O crescimento das cidades médias e simultâneo a qual processo que está transformando

O caso de Santa Cruz do Sul

Rogério Leandro Lima da Silveira

Resumo

No Brasil, a urbanização das metrópoles e das cidades médias têm se caracterizado por intensa e desigual valorização do solo urbano e consequente reestruturação urbana. Nas duas últimas décadas esse processo tem apresentado a crescente promoção de condomínios e loteamentos fechados enquanto novos produtos imobiliários residenciais, que representam importantes condicionantes e reflexos na organização espacial das cidades e na dinâmica de desenvolvimento e de planejamento urbano. O trabalho analisa esse processo na cidade média de Santa Cruz do Sul, localizada no estado do Rio Grande do Sul, no sul do Brasil, principal centro agroindustrial do tabaco no país.

Aborda-se as relações e contradições existentes entre os atores sociais e o Estado, no âmbito do mercado imobiliário local e como as mesmas têm incidido na produção desses novos produtos imobiliários na cidade, e seus reflexos para a segregação socioespacial e fragmentação do espaço urbano.

Palavras chave

Reestruturação urbana; condomínios residenciais fechados; segregação socioespacial.

I. Introdução

No Brasil, as cidades, notadamente as metrópoles e as cidades médias, têm experimentado no período contemporâneo os reflexos da reestruturação produtiva em sua dinâmica de produção e reprodução do espaço construído, sobretudo no âmbito do uso residencial e comercial do território, evidenciando um intenso e complexo processo de reestruturação urbana.

Os processos de produção do espaço urbano e de urbanização têm sido caracterizados por intensa e desigual valorização do solo urbano e consequente reestruturação urbana. Nas duas últimas décadas esse processo tem sido caracterizado pela crescente promoção de condomínios e loteamentos fechados, enquanto novos produtos imobiliários residenciais, que representam importantes condicionantes e reflexos na organização espacial das cidades e na dinâmica de desenvolvimento e de planejamento urbano.

Ainda que a origem, dinâmica e as características gerais desses processos já tenham sido examinadas em diferentes cidades brasileiras[1], é preciso avançar na análise empírica do modo como esses processos se concretizam nas diferentes regiões do território, e em cidades com distintas posições, funções e tipos de interações no âmbito da rede urbana, a fim de podermos aprofundar o conhecimento em relação às suas particularidades e especificidades, e aos seus reflexos na organização e reprodução do espaço urbano.

É com esse propósito que desenvolvemos nesse trabalho a análise dos processos recentes de urbanização, de reestruturação urbana e de valorização imobiliária na cidade média de Santa Cruz do Sul, principal polo agroindustrial de tabaco do país, centro sub-regional da rede urbana gaúcha e centro econômico comercial e de serviços da região do Vale do Rio Pardo, localizada na área centro oriental do Rio Grande do Sul.

A cidade de Santa Cruz do Sul possui 105 mil habitantes (Censo IBGE, 2010) e se constitui desde 1970, como o principal centro de produção agroindustrial, comercialização e processamento industrial do tabaco, e onde estão instaladas as sedes no país das principais subsidiárias das corporações multinacionais do tabaco que atuam no território brasileiro. Essa condição ao mesmo tempo em que revela a profunda dependência da economia urbana à instável dinâmica do mercado mundial de tabaco e de cigarros, também caracteriza a cidade como um importante e estratégico nó da rede urbana regional que recebe, intermedeia e difunde para o conjunto das demais cidades e áreas rurais da região do Vale do Rio Pardo, e das demais regiões produtoras de tabaco do Brasil, as informações, normas e regulações, e capitais advindos das sedes das corporações multinacionais no exterior e dos principais centros mundiais de comercialização.do tabaco.

Nos últimos vinte anos, a cidade reforçou sua posição de centro intermediário na rede urbana regional e estadual através do desenvolvimento e consolidação da sua função de centro regional de atividades comerciais com certa especialização e de serviços ligados ao segmento educacional e da saúde. Esse crescimento econômico foi acompanhado por intenso e desigual processo de urbanização, com ampliação progressiva do perímetro urbano, do aumento da verticalização da cidade na área central, com o surgimento de ocupações irregulares pela população de baixa renda na periferia urbana, bem como pela produção de novos produtos imobiliários através da construção de loteamentos fechados e condomínios residenciais em áreas intermediárias e periféricas da cidade.

Neste trabalho abordamos como as relações e contradições advindas dos interesses, das ações e interações de proprietários fundiários, promotores e incorporadores imobiliários locais e externos, e do Estado (sobretudo no âmbito do executivo e legislativo municipal) têm incidido ativamente na produção desses novos produtos imobiliários na cidade. Também analisamos, como a crescente demanda por novos produtos imobiliários localizados em loteamentos e condomínios fechados por parte de segmentos da população com alta renda, como profissionais liberais e empresários e executivos do setor do tabaco, demais ramos industriais e do setor de serviços, tem igualmente contribuído com a nova dinâmica de produção e reprodução do espaço urbano, através do aumento da segregação espacial, da fragmentação urbana e da apropriação de espaços públicos, advinda do fechamento de loteamentos e da constituição de condomínios residenciais de lotes.

A metodologia utilizada envolveu o levantamento de dados secundários sobre a dinâmica do desenvolvimento urbano, da evolução demográfica e econômica da cidade, junto ao IBGE e à FEE-RS; a busca de dados e informações sobre a produção e comercialização de loteamentos e condomínios fechados junto à Prefeitura Municipal, Cartório de Registro de Imóveis, Incorporadoras e Imobiliárias; a utilização de imagens de satélite para melhor representar espacialmente esses processos através do mapeamento temático da evolução urbana, e da localização dos novos produtos imobiliários na cidade em sua relação com o Plano Diretor e o zoneamento de usos do solo, com o zoneamento fiscal e a planta de valores, e com características do sitio urbano.

O trabalho está constituído de três tópicos. Inicialmente discutimos o conceito de reestruturação e sua relação com a reestruturação espacial urbana, destacando algumas considerações teóricas e metodológicas sobre os processos de reestruturação espacial e de valorização imobiliária nas cidades médias, e sobre os reflexos da produção de loteamentos e condomínios residenciais fechados, concebidos e comercializados como novos produtos imobiliários.

Em um segundo tópico, abordamos os processos recentes de urbanização e reestruturação urbana da cidade de Santa Cruz do Sul, destacando alguns aspectos da sua configuração espacial.

Por fim, no último tópico analisamos os processos de promoção e de instalação na cidade dos novos produtos imobiliários, os principais agentes sociais e suas estratégias de ação, e as políticas de regulação e de fiscalização do Estado que incidem na produção dos condomínios residenciais e loteamentos fechados. Analisamos igualmente as especificidades desses empreendimentos em Santa Cruz do Sul e seus reflexos na dinâmica socioespacial da cidade.

I. Reestruturação urbana e produção de novos produtos imobiliários

Os diferentes ciclos econômicos influenciaram as relações comerciais e de produção na região do Vale do Rio Pardo, com destaque para a transição entre os séculos XIX e XX, em que a tradicional produção agropecuária vinculada às oligarquias regionais foi confrontada com as novas formas de organização social e econômica proporcionada pela agricultura familiar, pautadas pelos investimentos externos na fumicultura. Naquele contexto tiveram importante ponto de representação socioespacial o espaço urbano que se estruturou e reestruturou de acordo com os efeitos de cada ciclo econômico, alterando as relações intraurbanas e interurbanas. Esta materialização das relações econômicas no espaço urbano passou por transformações ao longo do decorrer temporal, e pode-se dizer que a cada recomeço estrutural criou novas condições e possibilidades desafiadoras.

O termo reestruturação está relacionado a freadas e rupturas com os conceitos econômicos vigentes para recomeçar e se reestruturar diante das disputas econômicas pela sobrevivência dos territórios no mundo capitalista. Estes recomeços não aconteceram automaticamente após as crises, nem tampouco tiveram seus resultados já pré-determinados. Eram como “tiros no escuro” em busca de algo incerto que poderia ter êxito ou não, causando embates sociais e nos costumes existentes, devido a inúmeros fatores, dentre eles o poder econômico e pelo mando da produção que controlavam a vida urbana (Soja, 1993).

A reestruturação urbana está intimamente relacionada às mudanças econômicas de uma sociedade tendo como resultado modificações dos setores sociais e políticos e principalmente na configuração do espaço urbano. A reestruturação interna ou intraurbana como preferimos chamar, provocou “a desconcentração e a reconcentração dos espaços de assentamento e dos complexos de produção, transformando regiões metropolitanas em aglomerações estendidas, multinodais e multicêntricas” (Soares, 2006, p.5).

Com a reestruturação observa-se uma tendência à descentralização e dispersão. Descentralização relacionada à criação de novas centralidades, novos polos de crescimento e desenvolvimento impulsionados por empresas transnacionais e pela facilidade de comunicação e mundialização do capital. Dispersão relacionada com o aumento da malha urbana e com a modificação das relações sociais no espaço das cidades. Cada vez mais se observa empreendimentos distantes do núcleo central das cidades, valorizando áreas até então sem valor financeiro, modificando as relações centro x periferia (Sanfelici, 2010).

Para Neil Smith, a reestruturação da economia “espacial-urbana” é produto simultâneo do desenvolvimento desigual do capitalismo, das mudanças nos estilos de vida, da suburbanização do capital e da desvalorização dos investimentos no ambiente construído. (Soares, 2006, p.165).

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a instalação de um modelo fordista de produção e acumulação, o mundo viveu um momento de prosperidade econômica marcado pelas novas técnicas de produção em massa e intensa urbanização das cidades. Neste período observa-se além do crescimento populacional, o desenvolvimento comercial, industrial, o início da periferização dos trabalhadores nos subúrbios e da metropolização das maiores cidades. Os trinta anos gloriosos que marcaram o desenvolvimento fordista entraram em crise por volta da década de 1970 quando se passa a viver um novo processo: a acumulação flexível (Baeninger, 1998).

A crise do modelo fordista de produção e acumulação gerou a abertura para novas abordagens baseadas em modernos modelos de produção juntamente com a desindustrialização e a reestruturação das indústrias que abandonavam seus locais de trabalho em busca de novas localizações distantes das metrópoles.

As indústrias se mudam em busca de novas localizações iniciando um processo de deterioração e degradação da área central tradicional das metrópoles então desabitadas pela população. O mesmo se observou nas zonas fabris que foram abandonadas em detrimento de novas localizações mais providas de benefícios como a facilidade na obtenção de matéria prima. Foi marcante a desindustrialização das metrópoles, é o “começo do fim” (Soares, 2006, p.5).

Até os anos 1970 e 1980 a estrutura urbana das cidades era baseada num esquema centralizado, em torno de um centro principal que detinha as atividades comerciais e de serviços. No entanto, nos últimos vinte anos, foram criados novos centros nas cidades contemporâneas que se tornaram pontos de atração de investimentos, usuários e moradores tornando a cidade multipolarizada ou multicentralizada e com investimentos melhor distribuídos na malha urbana (Sposito, 2007).

Até o início do século XX as cidades tinham características basicamente centralizadas, e eram suporte e produto da divisão social, técnica e territorial do trabalho em escalas diferentes. Como expressão dessa realidade, as relações entre centro e periferia constituíam-se como a base da reprodução da vida cotidiana citadina (Santos, 2006).

As modificações intra e interurbanas das cidades contemporâneas alteram as relações entre as cidades de diversas formas. Uma delas é a modificação dos fluxos migratórios que exercem atração e repulsão de pessoas para estas regiões. Alguns moradores das cidades próximas são atraídos pelas modificações urbanas e melhorias tecnológicas que as cidades dispõem. Em contrapartida exercem o fenômeno de repulsão das pessoas da zona rural para a zona urbana em busca desta vida moderna disponível nas cidades mais desenvolvidas (Freitas, 2010).

As cidades médias apresentam melhores condições para o desenvolvimento de atividades atraindo empresas, pois dispõem de mão de obra qualificada, isenção fiscal promovida pelo poder público para atrair as empresas e um crescente nível de consumo facilitado pelas redes de transporte disponíveis e ainda não saturadas como acontece nas metrópoles (Freitas, 2010).

É preciso também considerar que os processos de produção do espaço urbano e de urbanização nas cidades brasileiras têm sido caracterizados por intensa e desigual valorização do solo urbano e consequente reestruturação urbana (Smolka, 1992). Nas duas últimas décadas, especialmente, esse processo tem sido caracterizado pela crescente promoção de condomínios e loteamentos fechados, enquanto novos produtos imobiliários residenciais que apresentam importantes condicionantes e reflexos na organização espacial e na dinâmica de desenvolvimento e de planejamento urbano das cidades. Como lembra Sposito (2006, p.176), “a diversidade de suas formas de produção e uso, bem como as decorrências desse fenômeno são de tamanha dimensão que se pode afirmar que têm grande peso na reestruturação das cidades contemporâneas em que aparecem e nas práticas socioespaciais dos moradores desses espaços, bem como dos que ficam fora de seus muros.” Em Silveira, Pereira e Ueda (2006) percebemos como esse processo tem se apresentado notadamente nas metrópoles brasileiras e latino-americanas.

A lógica predominante de produção do espaço urbano tem seguido a racionalidade do processo de reprodução do capital imobiliário, no qual, como lembra Harvey (2006), existe a permanente necessidade de circulação do capital no ambiente construído, alimentando um movimento constante de especulação e de construção de novas configurações espaciais, como as representadas pelos condomínios e loteamentos fechados.

A implementação desses novos produtos imobiliários residenciais nas cidades brasileiras tem revelado um processo de reestruturação urbana, com alterações no padrão de organização espacial centro x periferia, e redefinições no tradicional significado e conteúdo social e econômico da periferia urbana. A produção e comercialização desses novos empreendimentos imobiliários além de resultarem da articulação dos interesses de diferentes atores em torno da apropriação privada da renda da terra e dos ganhos imobiliários da comercialização dos imóveis, revelam também em sua materialização no espaço urbano um intenso processo de segregação socioespacial, e mesmo de autossegregação das classes mais abastadas através da construção de verdadeiros “enclaves fortificados” na cidade, intensificando a fragmentação urbana. (CALDEIRA, 2003 e SABATINI, 2001).

II. A estruturação urbana de Santa Cruz do Sul

O espaço urbano da cidade de Santa Cruz do Sul se caracteriza pela desigualdade social segmentada, de um lado, pelo eficiente sistema de infraestrutura e acesso aos equipamentos e serviços urbanos em determinadas áreas como o centro e zona norte da cidade, e de outro, pelas precárias condições de habitação, evidenciando o fenômeno da segregação na cidade, assim como também acontece no restante de nosso país. Ao longo de seu processo de desenvolvimento, Santa Cruz do Sul assistiu ao crescimento em suas bordas de inúmeras vilas operárias que, no decorrer dos anos, multiplicaram-se, abrigando a população de baixa renda, intensamente mobilizada pelo capital transnacional para o trabalho temporário na agroindústria do tabaco.

Nos últimos vinte anos, a economia urbana de Santa Cruz do Sul vem experimentando relativa diversificação econômica, sobretudo pelo crescente papel do comércio e dos serviços na dinâmica produtiva e urbana da cidade. Há crescente complexificação de suas funções urbanas com o desenvolvimento de um conjunto de atividades complementares à fumicultura, nos setores de comercialização, de crédito, de logística e tecnologia, bem como pela dinamização do comércio e setor de serviços – a cidade tem graus maiores de centralidade urbana no âmbito da região.

Em Santa Cruz do Sul tivemos nesse período a instalação de novos e modernos objetos técnicos como shopping centers, centros comerciais, lojas de conveniência e lojas especializadas. No setor de saúde, foram criadas inúmeras clínicas médicas e odontológicas especializadas, casas de repouso, spas, clínicas de fisioterapia e laboratórios especializados. No âmbito do lazer, criaram-se cinemas, casas noturnas, bares temáticos, restaurantes especializados, centros culturais, livrarias e agências de viagem. Com o aumento da urbanização e do desemprego na região, ampliaram-se os índices de violência nas cidades da região e, com ela, tivemos também a criação de empresas especializadas na vigilância residencial e comercial, bem como de empresas de segurança privada.

Desse modo, e diante da importância de Santa Cruz do Sul no âmbito da economia regional, em termos da oferta diversificada de serviços, arrecadação de tributos, geração de empregos e renda per capita, essa cidade atualmente se credencia como o principal nó da rede urbana regional. Os reflexos desse intenso processo de urbanização, e de maior complexificação dos usos do território na configuração espacial da cidade têm sido a crescente expansão da área urbana e da verticalização da cidade. Em relação à expansão espacial da área urbana, observa-se na figura 01 que sobretudo, a partir dos anos 1990 novas áreas no entorno da cidade passaram a ser incorporadas à malha urbana, ampliando o perímetro urbano da cidade. Tal processo ocorreu de modo diferenciado nas distintas áreas da cidade.

Na zona sul da cidade, a partir da instalação de novas empresas de tabaco e do setor metal-mecânico no distrito industrial houve a produção de inúmeros loteamentos populares, alguns realizados de modo irregular, demandado posteriormente a ação da prefeitura para regularizá-los, e outros resultantes de programas oficiais de habitação popular criados pelo governo municipal ou pelo governo federal, como o Minha Casa Minha Vida.

Figura 01 – Evolução do perímetro urbano de Santa Cruz do Sul:
1975 a 2012

Fonte: Elaborado pelo autor com base nos dados da Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul.

Esses novos loteamentos que foram sendo instalados nessa região da cidade tiveram como principal público de destino a população de baixa renda, constituída sobretudo por trabalhadores safristas que atuam na indústria do fumo e na indústria da construção civil. A localização desses loteamentos em áreas distantes do centro da cidade e dos principais equipamentos urbanos e serviços, e apresentando precária infraestrutura urbana possibilitou a comercialização de lotes com valores mais baixos no mercado imobiliário local, atraindo assim esse segmento social da população.

Já na zona norte da cidade, junto ao Cinturão Verde que circunda a cidade, observa-se a partir do final dos anos 1990 e principalmente a partir de 2002, a produção de novos produtos imobiliários com a construção de loteamentos e condomínios fechados. Esses novos empreendimentos imobiliários construídos com alto padrão, foram realizados para atender a demanda da população de alta renda que buscava residir em áreas próximas do centro da cidade, mais seguras e próximas à natureza.

III. Os agentes produtores do espaço urbano e suas estratégias de ação

O crescimento e as transformações da forma urbana são decorrentes, principalmente da ação de agentes como os construtores, empreendedores e empresas que atuam no ramo da construção civil. Concomitantemente a estes agentes a forma da malha urbana delineada ao longo do desenvolvimento deste município também sofreu forte influência dos pequenos investidores e proprietários de terras que atuam neste ramo como uma forma de investir seu capital. Neste item busca-se destacar alguns dos principais agentes produtores do espaço urbano verificáveis nas cidades estudadas pela pesquisa realizada, em particular em Santa Cruz do Sul.

Um primeiro tipo são os grandes empreendedores e proprietários fundiários, tais como industriais e comerciantes que adquirem imóveis como forma alternativa de investimento, injetando recursos e incentivando a construção civil. Esta prática acontece geralmente com a compra do imóvel nos estágios iniciais da construção ou ainda anterior ao seu início, momento em que ainda é possível ter acesso a valores de imóveis inferiores ao praticado pelo mercado quando o imóvel já está executado e pronto para ocupação. Neste momento as construtoras necessitam de maior quantidade de capital para iniciar a construção.

Estes agentes participam da produção do espaço urbano em diferentes escalas, variando desde o pequeno construtor individual que age num determinado ponto da malha urbana até o poder público que tem poder de influenciar e direcionar o desenvolvimento da cidade como um todo. De forma menos explícita, pode-se identificar no mercado de imóveis empresários de distintos ramos investindo seu capital na construção de condomínios.

A opção por investimentos em terras e imóveis como fonte de recursos é uma prática tradicional de proprietários fundiários, sejam eles grandes empreendedores ou não. Independente do uso de determinado investimento, é possível que este uso se altere e seja reorientado buscando maior atratividade e maior lucratividade para o investidor, funcionando como moeda de troca em momentos de escassez de recursos.

O segundo tipo está associado aos agentes externos ao mercado imobiliário que passam a atuar na construção de imóveis. Os agentes não diretamente vinculados ao mercado imobiliário podem exercer influência neste setor ao instituírem pequenas construtoras que atuam de forma isolada. Estes empreendedores trabalham com mão de obra terceirizada investindo em construções de condomínios de pequeno porte, buscando neste empreendimento um retorno financeiro. Muitas destas construtoras não empreendem mais de um condomínio, sendo dissolvidas após a conclusão da construção. A percepção de que o mercado imobiliário e de construção civil é um ramo muito lucrativo ilude alguns empreendedores que se aventuram neste ramo.

O terceiro tipo de agentes são as lojas de materiais de construção que, assim como as imobiliárias, também atuam na construção de sobrados. Firmando parcerias com os proprietários dos lotes a realização de permutas no próprio local é a estratégia mais utilizada por estes agentes. Outra forma de atuação do comércio de material de construção na edificação de sobrados pelos empreendedores individuais e pequenas construtoras é o financiamento do material de construção adquirido para a execução da obra. As lojas de material de construção vendem as mercadorias para receber somente após a venda da unidade residencial, independentemente do tempo de espera. A cobrança de juros por este financiamento é vantajosa para as lojas, mas também acaba beneficiando o pequeno empreendedor, que não necessita utilizar grandes quantias de capital na construção do empreendimento.

Há ainda os proprietários de parcelas de solo urbano que realizam permutas para a construção de condomínios, que firmam parcerias com construtoras fornecendo o lote para que elas construam e em troca recebem uma unidade residencial nos condomínios de sobrados. É uma outra escala de atuação de um mesmo agente que tem forte influência na produção da cidade.

Por fim, há o Estado. A participação do Estado está associada, entre outras práticas, ao processo de regulação dos processos de aprovação e fiscalização do território municipal. Uma questão importante apontada por técnicos municipais diz respeito à inexistência de legislação sobre condomínios de qualquer tipo. A legislação municipal e os procedimentos técnicos limitam-se ao veto da construção de sobrados em quatro setores, sem definir dimensões mínimas dos compartimentos nem limitar o número de sobrados a serem construídos em cada lote ou área da cidade. Não se pode negar, no entanto, que a maior contribuição do Estado, portanto, está na estruturação da legislação municipal diretamente associada à organização do território municipal: o Plano Diretor.

A produção dos novos produtos imobiliários na cidade de Santa Cruz do Sul tem sido acompanhada por um crescente processo de segregação socioespacial experimentada pelas classes sociais abastadas da cidade. Tal processo decorre de distintas variáveis que de certo modo se complementam em uma dada racionalidade que acaba justificando e explicando a demanda existente na cidade pela aquisição desses novos produtos.

Uma primeira razão é aquela advinda do clima de insegurança, medo e violência urbana que a cidade, com sua intensa e desigual urbanização passou a experimentar nesse período.

As campanhas de marketing contratadas pelas empresas incorporadoras para divulgação dos novos empreendimentos imobiliários na cidade superestimam e manipulam esses dados, de modo a justificá-los. Assim, elas costumam valorizar a sensação de segurança que o ato de morar em um loteamento ou condomínio fechado pode representar, diante do clima de violência, medo e insegurança generalizados que vigora fora dos muros dos novos empreendimentos.

Em Santa Cruz do Sul, progressivamente os novos produtos imobiliários vão se afirmando como a negação do espaço público, do espaço do encontro, da alteridade, de encontrar e conviver com o outro, com o diferente, dialeticamente afirmando sua identidade na cidade. A cidade pequena com alto controle social, e muitos pontos de encontro, gradativamente é substituída pela cidade dos espaços murados.

O espaço, antes contínuo, alternando diferentes usos, mas mantendo a coesão territorial e a integração espacial, advinda da articulação do sistema viário, vai dando lugar a uma cidade crescentemente fragmentada, separada, cujos diferentes espaços e distintas tipologias, seguem a lógica de reprodução do mercado imobiliário, e ao fazê-lo afirmam um modelo de organização espacial segregador e desigual tanto em termos sociais, políticos e culturais.

Outra razão para este fenômeno de reestruturação urbana se refere ao valor diferenciado de uso e de troca que os novos produtos imobiliários buscam oferecer aos consumidores desses empreendimentos, através da sua localização na cidade, do tipo de constituição, dos equipamentos e serviços disponibilizados aos consumidores.

Observando o conjunto dos novos produtos imobiliários construídos na cidade nos últimos quinze anos verificamos a existência de uma ampla diversidade de tipos, desde aqueles produzidos originalmente como loteamentos e em seguida modificados com o fechamento dos acessos públicos, aos empreendimentos de alto padrão, planejados desde a concepção como condomínios urbanísticos.

Um exemplo importante que revela muitos desses processos é o Condomínio Reserva dos Pássaros, construído a partir de 2008 pela incorporadora João Dick Imóveis Ltda., empresa de capital local, em área junto ao Cinturão Verde. (Figura 02). O empreendimento foi registrado na Prefeitura Municipal como Loteamento Condomínio Reserva dos Pássaros, denotando o seu conteúdo contraditório, pois ao mesmo tempo que possui sua estrutura organizada em uma área fechada com muros, de 375.254,57 m² dividida em 325 lotes, vias internas de acesso e comunicação, áreas verdes e de lazer, os proprietários adquirem e registram seus lotes de modo individualizado.

Portanto, esse empreendimento imobiliário é em sua essência um loteamento, pois apresenta lotes para venda e não unidades de habitação. Os lotes, estão localizados em ruas internas, e estas deveriam, uma vez configurado o loteamento, serem doadas ao poder público municipal, para uso e circulação pública e não apenas dos moradores que residem nos lotes do “condomínio” fechado. Ou seja, o condomínio fechado de lotes que caracteriza esse empreendimento, é em realidade um loteamento fechado.

A construção do empreendimento imobiliário foi realizada através da contratação, pela incorporadora, de outras empresas prestadoras de serviços especializados. A Empresa Construtora Rech Ltda. foi a empresa responsável pela terraplanagem, abertura das vias internas, instalação da infraestrutura e urbanização da área, preparando-a para a comercialização dos lotes. A empresa Projeto: Arquitetura e Construções, também de Santa Cruz do Sul, foi a responsável por projetar e construir as áreas de uso social como espaço gourmet, fitness, quiosque, administração, portaria e salões de festas. Quanto à comercialização dos lotes, está é feita exclusivamente pela empresa João Dick Imóveis, que assim acaba concentrando nela a maior parte do capital advindo da venda dos lotes.

Observando a Figura 02, verifica-se o alto padrão de construção do empreendimento bem como sua localização diferenciada, já que o mesmo apresenta em seu entorno contíguo as áreas de matas que compõem o Cinturão Verde da cidade. Além disso, existe no interior do empreendimento uma área verde de preservação, com 7.691m².

Figura 02 – Loteamento Condomínio Urbanístico Reserva dos Pássaros – Santa Cruz do Sul

Fonte: Elaboração do autor com base na imagem de Satélite GeoEye 2012 e dados do empreendimento imobiliário.

Tal condição possibilita ao incorporador obter, no ato da comercialização dos lotes, uma dada renda diferencial da terra, advinda da compra do acesso a esses atributos diferenciados do empreendimento. Também, contribuem e reforçam essa condição a oferta de equipamentos e serviços de uso exclusivo dos futuros moradores, como por exemplo: portaria 24 horas, vigilância eletrônica, serviço de ronda, serviço de carro leva e traz, dois salões de festas, espaço gourmet, piscina adulta e infantil, campo de futebol, sete quadras poliesportivas, de tênis e de padel.

O conjunto desses equipamentos e serviços qualificam esse novo produto imobiliário e permitem sobrevalorizar o valor de troca dos lotes a serem comercializados, possibilitando ao incorporador obter, quando da efetivação da venda, uma verdadeira renda de monopólio, sobretudo por que há uma demanda para esse tipo de produto, advinda dos segmentos mais abastados da população da cidade.

Além disso, de acordo com o diretor da empresa incorporadora, o que atrai o comprador para a aquisição de lote no condomínio, constituindo-se na principal vantagem para ele, “é o fato de o mesmo se encontrar pronto para construir, em um lugar que já tem tudo. Ou seja, as coisas funcionam bem, não dependendo tanto do poder público e nem da boa vontade ou sorte de vizinhos, porque tem regras construtivas claras”.

Esse discurso, comum entre os incorporadores valoriza o caráter autônomo e privado do condomínio, e da sua quase não dependência das ações do poder público quanto ao fornecimento de infraestrutura e serviços, ao mesmo tempo que reforça o caráter de verdadeiro enclave socioespacial na cidade.

Por fim, cabe ainda destacar a constituição de um novo conteúdo socioespacial da periferia urbana que a produção e a ampliação dos novos produtos imobiliários passaram a representar em Santa Cruz do Sul. A Figura 03, que ressalta a distribuição da renda média mensal da população na cidade, demonstra a distribuição dos produtos imobiliários de acordo com os padrões econômicos dos diferentes setores da cidade.

Figura 03 – Distribuição da renda média mensal da população
em Santa Cruz do Sul – 2010

Fonte: Elaboração do autor com base nos dados do IBGE, 2010.

Observamos que, enquanto na porção sul da cidade a periferia urbana se caracteriza pela presença da população de baixa renda com rendimentos médios mensais abaixo de R$ 756,00, nas áreas periféricas localizadas ao norte da cidade, por sua vez, vamos encontrar mais recentemente a presença de segmentos da população com maiores rendimentos. Este é o caso das áreas onde estão localizados grande parte dos condomínios e loteamentos fechados, como os vistos acima, em que a renda média da população.

Os dados permitem verificar a existência não apenas do tradicional processo de segregação espacial a que está submetido a população de baixa renda no sul da cidade, mas também o processo de autossegregação da população com maior rendimento em seu processo de localização nas áreas de ocorrência dos novos produtos imobiliários no quadrante norte da cidade. Tal processo tem resultado na fragmentação espacial e na consolidação de uma forte e aparente segregação socioespacial.

Conclusões

A presença de novos produtos imobiliários e a estruturação do espaço urbano em cidades médias, sobretudo nas duas últimas décadas, revela diferentes formas de influência na dinâmica não apenas urbana, mas regional.

As estratégias dos agentes sociais envolvidos na produção desses empreendimentos podem assumir diferentes formas de organização institucional ou política, mas em geral apoiam-se em fatores recorrentemente verificáveis nas cidades em estudo: valores do solo mais acessíveis, infraestrutura pré-existente e estoque imobiliário ou vazios urbanos disponíveis (dependendo do tipo e tamanho do empreendimento).

Verificou-se ainda que as distintas tipologias possuem diferentes formas de ocupação do território, desde composições mais facilmente articuladas à dinâmica da cidade existente, como é o caso dos tipos mais abertos, até situações com fortes implicações de alteração do tecido urbano, como é o caso dos grandes empreendimentos fechados.

O estudo oferece oportunidade de compreensão de muitos fenômenos socioespaciais relacionais a esses produtos imobiliários; no entanto, muito há a discutir ainda sobre os avanços tecnológicos utilizados na sua implementação ou ainda nos efeitos comportamentais dos usuários que dele participam ou com ele se confrontam. De qualquer forma, é certo considerar que esses empreendimentos estão inseridos dentro de um entendimento de reestruturação das cidades contemporâneas e, neste sentido, são conteúdos importantes dos estudos urbanos e regionais na contemporaneidade.

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O que significa cidades médias e simultâneo a qual processo que está transformando a configuração industrial do Brasil?

As cidades médias no Brasil vêm crescendo muito em função da desconcentração industrial dos grandes centros metropolitanos, fato que está relacionado com as deseconomias de aglomeração, onde não há mais uma perspectiva de localização das fábricas nas grandes cidades.

Qual é o processo que está transformando a configuração industrial do Brasil?

O que caracteriza a industrialização brasileira hoje é o processo de desconcentração espacial da indústria e de desindustrialização.

Quais são os fatores do crescimento das cidades médias?

Maior migração significa maior crescimento populacional, supondo que não há diferença substancial entre as taxas de natalidade e mortalidade entre as cidades do sistema urbano. Essa é a tendência verificada nas cidades médias, um crescimento econômico acompanhado a um crescimento populacional.

Como podemos definir as cidades médias?

As cidades médias são usualmente definidas como cidades com mais de 100 e 500 mil habitantes, que não fazem parte de regiões metropolitanas (não podem ser, portanto, nem metrópoles e nem cidades-satélite) e que apresentam um relativo grau de avanço em sua economia e infraestrutura.

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