A amazônia é nossa de quem mesmo

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A Amazônia é a maior floresta tropical contínua do planeta e 60 % de sua área está no Brasil. A importância da floresta para o ciclo das chuvas já foi fartamente documentada pela ciência (Figueroa y Nobre; Nobre; Marengo et al.) e é notório que os incêndios florestais e os desmatamentos alimentam um ciclo sucessivo de perda de vegetação e de redução de chuvas, além de agravarem a emissão de gases causadores do efeito estufa (Houghton) e as mudanças climáticas globais.

Ao mesmo tempo em que as chuvas produzidas na Amazônia irrigam e abastecem as principais metrópoles e regiões agrícolas do Mercosul, a continuidade dos desmatamentos e das queimadas impacta negativamente todo o planeta, já que a Amazônia possui o maior estoque de carbono florestal do mundo, estimado em 49 bilhões de toneladas de carbono (Saatchi et al. 816-837).

Apesar do consenso existente quanto à importância da manutenção da floresta em pé, o ritmo de destruição movido sobretudo por atividades ilegais, tem crescido nos últimos anos. Em 2020, os números do programa de monitoramento do desmatamento (PRODES) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) apontaram oficialmente uma extensão de 11.088 km2 desmatados na Amazônia, a maior área desde 2008. Este resultado é 9,5 % maior que a área desmatada em 2019, que, por sua vez, foi 29 % maior que no ano anterior à posse de Jair Bolsonaro, caracterizando uma política intensiva e proativa de desmonte dos mecanismos de comando e controle, e das políticas de apoio à conservação e ao uso sustentável da floresta.

A continuidade dessas políticas acelera as dinâmicas que podem nos levar ao chamado Tipping Point (Lovejoy e Nobre), o ponto de não retorno, a partir do qual serão irreversíveis as mudanças nas características da Amazônia que conhecemos e que justificam a sua relevância para o clima global. Segundo os autores, se entre 20 a 25 % da região for desflorestada, se chegará a esse ponto crítico, afetando não apenas a região, mas o país e o mundo. Atualmente as taxas de desmatamento na região já estão próximas dele. Para o historiador Luiz Marques, da Universidade de Campinas, isso representa não apenas a maior, mas também a mais iminente ameaça de colapso socioambiental das sociedades da América do Sul (Marques 1).

O papel da Amazônia no equilíbrio climático global é um dos argumentos recentes no enredo que coloca a região como um dos temas mais estratégicos e complexos na geopolítica brasileira.

O combate ao desmatamento

Reza uma das lendas de Brasília que quando Dilma Rousseff estava para assumir a presidência, Lula a alertou que a evolução da taxa de desmatamento na Amazônia seria fator determinante na avaliação da política ambiental do governo. Verdadeira ou não, a história ilustra um dos aprendizados do presidente que conseguiu o que parecia impossível à época: conter o avanço da destruição da região.

O Plano de Prevenção e Controle dos Desmatamentos na Amazônia (PPCDAM), iniciado no primeiro mandato de Lula, foi responsável pela maior redução de emissões de gases do efeito estufa já realizada por um país e demonstrou ao mundo que controlar o desmatamento é possível, desde que haja vontade política para isso. Uma das bases do sucesso desse plano foi a transversalidade, mantra da então Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. O PPCDAM foi coordenado pela Casa Civil da Presidência da República e envolveu 12 ministérios. Baseou-se nos conhecimentos acumulados em instituições de pesquisa, órgãos públicos e organizações da sociedade civil, para aprimorar o entendimento sobre as dinâmicas e atividades responsáveis pelo desmatamento, permitindo uma visão integrada que embasou o desenvolvimento de políticas e normas adequadas à realidade da região.

No primeiro período de implementação do plano, entre 2004 e 2006, a taxa de desmatamento caiu cerca de 50 %. A demarcação de terras indígenas, a criação de unidades de conservação, o desenvolvimento de novas ferramentas de monitoramento do desmatamento e o reforço na fiscalização ambiental e punição de infratores, contribuíram decisivamente para a redução das taxas, assim como a queda de preços das commodities agrícolas (Soares-Filho et al. 363).).

Os resultados do PPCDAM fortaleceram a liderança brasileira nos debates internacionais sobre meio ambiente e mudanças climáticas, e permitiram que a discussão sobre o desenvolvimento da região alçasse outro patamar, ao menos entre os especialistas, pautando novas perspectivas e soluções para valorizar e manter a floresta em pé.

Se, por um lado, esse cenário propiciou o desenvolvimento de processos intersetoriais, como a moratória da soja e o grupo de trabalho da pecuária sustentável, em que o setor privado parecia interessado em buscar soluções para uma produção livre de desmatamento, por outro, estimulou uma reação da chamada bancada ruralista, representação dos grandes proprietários rurais no Congresso Nacional, para fragilizar a legislação ambiental.

Retrocessos legais

O ímpeto de flexibilizar os marcos legais socioambientais sempre esteve presente no legislativo federal, unindo os interesses de diferentes setores econômicos que dependem, ou se beneficiam, da destruição da floresta, assim como dos que atuam na ilegalidade. Não há, por outro lado, setores empresariais que atuem na defesa dos direitos socioambientais. Mesmo o que se convencionou chamar de “agronegócio moderno”, representado por algumas empresas engajadas em processos de construção de padrões e certificações ambientais, comprometidas com uma agenda de sustentabilidade ambiental, não se mobiliza ou logra ter dimensão política para incidir nas decisões, que são tomadas pelo segmento patrimonialista mais atrasado, que controla a representação do setor no parlamento.

Na legislatura 2010-2014, a chamada bancada ruralista, majoritariamente formada por donos de terra, em sua maioria profissionais liberais e não produtores rurais (Castilho), se mobilizou para a revisão do Código Florestal, efetivada em 2012. A alteração na lei diminuiu em 58 % a área de floresta que deveria ser restaurada no país por ter sido desmatada ilegalmente. Além disso, tornou passível de desmatamento legal cerca de 88 milhões de hectares (Soares-Filho et al. 364). A concessão de anistia de multas por desmatamento ilegal, também aprovada, foi um sinal inequívoco de que o crime ambiental compensa.

O apoio do governo federal às alterações no Código Florestal foi um dos marcos da mudança da política de controle do desmatamento, que ficou evidente em 2013, com a transferência da coordenação do PPCDAM da Casa Civil para o Ministério do Meio Ambiente, e também com a redução de 42 % no orçamento da fiscalização ambiental entre 2013 e 2016, além da redução de 15 % do quadro de fiscais ambientais.

Como efeito imediato do enfraquecimento do Código Florestal, em 2013 o desmatamento cresceu 28 %, após seis anos sucessivos de queda. A partir daí, o PPCDAM foi sendo desmontado. Não foi por acaso que, em 2015, a presidente Dilma Rousseff nomeou como ministra da Agricultura a senadora Katia Abreu, que presidia a Confederação Nacional da Agricultura desde 2008 e teve a alteração do Código Florestal como prioridade nos seus dois mandatos.

Apesar disso, o Brasil ainda manteve sua relevância no debate internacional de mudanças climáticas, surfando na onda das reduções recentes, sustentando um discurso moderado de defesa ambiental e implementando algumas políticas paradigmáticas, como a Política de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas (PNGATI) e o Fundo Amazônia.

No Congresso Nacional, entretanto, a ofensiva da bancada ruralista seguiu firme com a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar a atuação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), na demarcação de terras indígenas e na titulação de quilombos.

Retórica conspiratória

Assim como na discussão do Código Florestal, a CPI baseou seus trabalhos em teorias conspiratórias em torno da cobiça internacional sobre a Amazônia. As mesmas teorias que embasam a visão militar da região desde a década de 70, e que voltaram a pautar as políticas de governo com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Bolsonaro sempre difundiu a ideia de setores militares, reproduzida por segmentos empresariais, segundo a qual uma ameaça de invasão internacional paira sobre a região, e que a defesa do meio ambiente e dos direitos territoriais dos povos estaria por trás de planos estrangeiros para impedir o desenvolvimento do país e desmembrar as terras indígenas do território brasileiro.

Essas ideias se propagaram com mais intensidade a partir da década de 1980, com a publicação de livros como a A Farsa Ianomâmi, do oficial paraquedista Carlos Alberto Menna Barreto (1929-1995), e Máfia Verde, do mexicano Lorenzo Carrasco, e têm servido à defesa do “direito de desmatar”. Conforme alerta o jornalista Rubens Valente, o governo Bolsonaro realmente acredita que o país tem o direito de ampliar o desmatamento e a ocupação da região, onde for possível (Valente, “Ponto crítico”).

Em agosto de 2020, em evento organizado pelo Aspen Institute, em Washington, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, respondeu aos questionamentos sobre a política ambiental do governo usando argumentação semelhante e desconsiderou os já conhecidos números do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV, Relatório da Comissão Nacional da Verdade) sobre indígenas mortos durante a ditadura e o fato de que o Brasil não detém a Amazônia sozinho:

Entendemos a preocupação de vocês (norte-americanos), porque vocês desmataram suas florestas. Vocês querem nos poupar de desmatar a floresta, como vocês desmataram as suas. Sabemos que vocês tiveram guerras civis, também tiveram escravidão e só pedimos para vocês que sejam amáveis como somos amáveis. Vocês mataram seus índios, não miscigenaram (Agência O Globo).

Guedes ainda disse que “os militares brasileiros não são como o general Custer, que matou os índios. Os nossos militares são pessoas gentis” (Agência O Globo).

Argumentou que o Brasil é soberano e que a Amazônia é um assunto que diz respeito somente ao Brasil: “Os militares estão dizendo, obrigado pela preocupação, mas essa é nossa terra. Não precisamos desmatar a Amazônia para produzir produtos agrícolas” (Agência O Globo).

Ao reforçar o argumento militar, Guedes ignorou as conclusões do capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” do relatório da Comissão Nacional da Verdade, que estima em pelo menos 8.350 os indígenas que foram mortos no período da ditadura militar e revela, como uma das particularidades dessas violações, o fato de se destinarem não a indivíduos, mas a povos inteiros, por meio do esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecciosas, prisões, torturas e maus tratos (CNV, Violações de direitos humanos).

No documento, inúmeros casos de violações de direitos contra povos indígenas estão relatados, entre eles as mortandades causadas pela construção de estradas e hidrelétricas entre os Panará (MT), Parakanã (PA), Akrãtikatejê (PA), Yanomami (RR) e Waimiri-Atroari (AM).

Entre as principais conclusões está a de que essas violações obedeciam a uma sistemática que transformava “o ‘modo de ser’ de cada um dos povos indígenas em alvo político da perseguição do Estado visando a apropriação de seus territórios” (CNV 252).

Guedes fez doutorado em Chicago, mas ignora, assim como Bolsonaro, que há, ainda hoje, mais de 3 milhões de índios vivos nos EUA, três vezes a população indígena no Brasil. Embora, nos EUA, a extensão da maior parte das terras indígenas siga padrões similares aos das terras do nordeste e do centro-sul do Brasil, e não o da Amazônia, de maior extensão, naquelas que o estado americano foi obrigado a reconhecer através de tratados, também é reconhecida a autonomia administrativa dos povos indígenas, que têm direitos, além das terras, aos recursos minerais e ao petróleo, se houver.

É evidente que a experiência norte-americana no trato com os povos indígenas está longe de constituir um paradigma civilizatório aceitável, mas Guedes e Bolsonaro se apropriam dela, selecionando o que ela tem de pior, para tentar justificar o intento genocida atual do governo.

Integração forçada

Como disse o próprio presidente em uma de suas frases mais famosas, o objetivo de seu governo é fazer o Brasil “semelhante ao que era há 40, 50 anos” (Gielow y Fernandes). Isso significa voltar a olhar a Amazônia com a mesma perspectiva que motivou as maiores transformações que promoveram a retirada da floresta a partir da década de 1970: incentivo à infraestrutura e promoção da expansão agrícola e da mineração. Retoma a lógica de estímulo à ocupação que esteve vigente sob o Programa de Integração Nacional, no âmbito do qual foi construída a Transamazônica. Na época, peças publicitárias comemoravam a abertura da estrada com uma frase que retrata bem a forma como a ocupação da região era vista: “homens e máquinas lutam contra a selva, contra o clima, para dar ao Brasil a sua maior obra rodoviária”.

O lema do Programa de Integração Nacional – “integrar para não entregar” – se referia à Amazônia como um todo, mas afetou, em especial, os povos indígenas. A integração dos povos à sociedade nacional, vista como efeito direto do processo de colonização adjacente à infraestrutura, resolveria a “questão indígena” no Brasil. A política indigenista integracionista apostava na conversão dos indígenas em trabalhadores, como afirmou o então superintendente da Funai, general Ismarth de Araújo, ao jornal O Estado de São Paulo, em 1972: “índio integrado é aquele que se converte em mão de obra”.

Essa sempre foi a perspectiva de Bolsonaro sobre os povos indígenas. Bolsonaro foi o primeiro deputado a apresentar um projeto de decreto legislativo (PDC 170/1992) sustando efeitos de normas relativas à demarcação de terras indígenas, no caso, revogando a portaria que declarou como de posse permanente indígena a Terra Indígenas Yanomami. No ano seguinte, renovou sua intenção com o PDC 365/1993 para tentar tornar sem efeito o decreto de homologação da demarcação.

Em abril de 1998, em pronunciamento na Câmara dos Deputados criticando a política de demarcação de terras indígenas na Amazônia, Bolsonaro já recorria à mesma referência de Guedes:

Até vale uma observação neste momento: realmente, a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e, hoje em dia, não tem esse problema em seu país – se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro; recomendo apenas o que foi idealizado há alguns anos, que seja demarcar reservas indígenas em tamanho compatível com a população (República Federativa do Brasil, Diário da Câmara dos Deputados, ano LIII, n° 064 09957).

Como presidente, Bolsonaro colocou em prática medidas e políticas que buscam fazer valer essa visão de todos os modos. Recém-eleito, reiterou sua intenção de forçar a integração dos índios: “Nosso projeto para o índio é fazê-lo igual a nós. Eles têm as mesmas necessidades que nós. O índio quer médico, dentista, televisão, internet” (AFP).

Declarações como essa são constantes em toda a trajetória do presidente. Em 2015, ainda deputado, afirmou que “índio não fala nossa língua, não tem dinheiro, é um pobre coitado, tem que ser integrado à sociedade, não criado em zoológicos milionários” (Midiamax).

Por tudo isso, não surpreendeu aos povos indígenas que, durante a campanha eleitoral, Bolsonaro tenha anunciado que não demarcaria nem mais um centímetro de terras indígenas ou territórios quilombolas (Bolsonaro TV), reverteria demarcações emblemáticas, como a da própria Raposa Serra do Sol e abriria essas áreas à exploração econômica por terceiros. Bolsonaro chega a declarar que as terras indígenas devem ser passíveis de venda e afirma, sobre a agência indigenista federal: “Se eleito, eu vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho. Não serve mais” (INA).

Sobre a atuação dos órgãos ambientais federais, a posição de Bolsonaro não foi diferente: “Não vou mais admitir o Ibama sair multando a torto e a direito por aí, bem como o ICMBio. Essa festa vai acabar” (Gilly).

Se, normalmente, os períodos eleitorais já provocam alta nos desmatamentos, com os reiterados discursos do então candidato Bolsonaro, o desmatamento na Amazônia saltou 29 %, inclusive em terras indígenas (62 %) e unidades de conservação (95 %), onde essa atividade é ilegal. Ainda durante a campanha, Bolsonaro prometeu extinguir o Ministério do Meio Ambiente e transferir as suas funções para o Ministério da Agricultura. Mas, pouco depois da eleição, ruralistas influentes o convenceram a não concretizar a ideia, receosos de que tal movimento pudesse induzir restrições às exportações do Brasil. O governo, então, transferiu parte das atribuições relacionadas à gestão das florestas e à implementação do Código Florestal para o Ministério da Agricultura, controlado pela bancada ruralista.

O tema das mudanças climáticas e o combate aos desmatamentos foram, praticamente, abolidos da estrutura do Ministério do Meio Ambiente, como se o presidente quisesse acabar com o problema omitindo referências a ele. O mesmo ocorreu no Ministério das Relações Exteriores, para o qual Bolsonaro, negacionista climático assumido, nomeou um ministro de Relações Exteriores que considera o aquecimento global uma “invenção de Ideologia marxista”. Não surpreende que o presidente tenha se visto na obrigação de demiti-lo em 2020, tão logo Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos, com uma forte plataforma de enfrentamento das mudanças climáticas.

Ao definir a estrutura de governo, no seu primeiro ato como presidente, Bolsonaro promoveu a mais drástica reforma ministerial desde pelo menos o governo Fernando Collor (1990-1992). A MP 870, que estabeleceu a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios, transferiu a Funai, vinculada ao Ministério da Justiça desde 1991, à pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Já a competência para demarcar Terras Indígenas, atribuída à Funai desde a sua fundação, Bolsonaro tentou transferir para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, reagiu à medida, recomendando que as organizações indígenas em todo o país propusessem ações populares na Justiça para anular o ato presidencial, que, segundo os índios, “destrói praticamente toda a política indigenista brasileira” (APIB, PELO DIREITO DE EXISTIR!).

Em geral, o Congresso Nacional reconhece a prerrogativa dos governos eleitos de estruturar os órgãos do modo que melhor lhes convém, mas a dimensão das mudanças propostas por Bolsonaro ensejou mais de 500 emendas à MP. Durante o processo da sua conversão em lei, o Congresso Nacional restituiu a competência para tratar dos “direitos dos índios” ao Ministério da Justiça, inclusive para demarcar terras indígenas. Mas Bolsonaro não se convenceu e editou outra medida provisória (MP 886), recolocando as demarcações no MAPA, o que justificou a propositura de várias ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) no Supremo Tribunal Federal.

A manobra não convenceu o Legislativo e o então presidente do Congresso, Davi Alcolumbre, devolveu a medida “por ofensa ao art. 62, § 10, da Constituição Federal”, que estabelece que é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.

Ao tentar passar por cima dessa decisão do Congresso, Bolsonaro criou uma das primeiras crises entre os dois poderes. Em agosto de 2019, no julgamento das ADIs que sacramentaram a decisão de manter a Funai no Ministério da Justiça, o então decano do STF, ministro Celso de Mello, afirmou que a atitude do Governo Bolsonaro “traduz uma clara, uma inaceitável transgressão a autoridade suprema da Constituição e representa uma perigosa e inadmissível ofensa ao princípio fundamental da separação de poderes”.

A nova estrutura administrativa sinalizava objetivamente a subordinação de direitos fundamentais de minorias a interesses econômicos, abrindo caminho ao desmonte de políticas construídas ao longo de décadas de avanços. Além do reconhecimento dos territórios quilombolas, permaneceram no Ministério da Agricultura outros temas fundiários, como a reforma agrária e a regularização fundiária na Amazônia Legal e de outros territórios tradicionais.

Soberania predatória

A postura do candidato e do presidente é em tudo coerente com os cinco mandatos de deputado, em que não mediu esforços para propagar teorias conspiratórias sobre a internacionalização da Amazônia e atacar as políticas ambientais e os direitos dos povos indígenas.

Bolsonaro foi um dos grandes opositores da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Em 2016, ele mandou um recado a seus apoiadores em Roraima, já visando sua eleição: “Em 2019 vamos desmarcar [a reserva indígena] Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros”.

A homologação da Raposa Serra do Sol, em 2007, marca um dos momentos de crescimento do movimento de politização do Exército, segundo o antropólogo Piero Leirner, movimento esse intensificado com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e que seria uma das bases para a sua candidatura à presidência em 2018.

Segundo Leirner, a preocupação dos militares com a soberania da Amazônia serve a um propósito político e tem sentido exclusivamente retórico. Leirner acrescenta: “Militares são muito corporativos desde o início da sua formação e pensam, antes de mais nada, nos seus companheiros militares. O pilar da vida militar é a própria instituição militar”. Essa perspectiva dialoga, de forma consistente, com o histórico de manifestações do então deputado Jair Bolsonaro sobre a Amazônia (107).

Em junho de 2005, em plena efervescência da criação do PPCDAM, o então deputado Jair Bolsonaro ecoava a teoria do interesse internacional sobre a Amazônia no plenário da Câmara dos Deputados: “Não podemos falar em desmatamento misto para floresta sem falar em políticas de controle da natalidade. A nossa população cresce numa faixa de 2,5 milhões de habitantes por ano, assim como a demanda por alimentos. Na verdade, o Primeiro Mundo pretende apoderar-se da Amazônia por meio de artifícios e ataques baratos ao nosso País” (República Federativa do Brasil, Diário da Câmara dos Deputados, ano LX, n° 085 22784).

Em dezembro do mesmo ano, ele abre um discurso de defesa corporativa das Forças Armadas afirmando:

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, não apenas no Senado Federal, como também na Câmara dos Deputados, o Sr. Ministro da Defesa, José Alencar, acompanhado dos 3 comandantes militares, por 12 horas ininterruptas, prestou esclarecimentos sobre a crise que se abate sobre as Forças Armadas, em especial no que se refere ao orçamento e às questões voltadas à Amazônia, alvo da grande cobiça internacional. A riqueza daquela área tem preocupado todos os brasileiros. A invasão silenciosa já ocorreu: a indústria da demarcação de terras indígenas já chegou ao final. Já se demarcou praticamente tudo o que interessava. Toda a área onde existiam os mais variados tipos de riquezas já foi demarcada como sendo terras indígenas. Estamos, portanto, perdendo autonomia sobre aquela área. A única instituição que poderia ou ainda pode se opor a essa cobiça internacional, seja pela força, seja pela persuasão, vem, ao longo dos últimos anos, tendo sua coluna vertebral vergada. No tocante ao orçamento, atualmente ele é basicamente para pagamento de pessoal. Investimentos não existem e reaparelhamento também não. Isso é um breve detalhe (República Federativa do Brasil, Diário da Câmara dos Deputados, ano LX, n° 221 62961).

Em 2006, mais exemplos de menções à Amazônia no contexto de defesa de melhores salários e condições de trabalho para as Forças Armadas, além da repetição do argumento do controle populacional:

Voltemos nossa atenção para a Amazônia. Alguns sempre criticam os militares pelas nossas posições contrárias às demarcações de terras indígenas, que hoje representam 12 % do território nacional, uma área maior que a da Região Sudeste – Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro – para aproximadamente 400 mil índios. Mas o que reserva essa área especial, grande parte dela demarcada na Amazônia? Ora, recursos minerais, já escassos para atender as necessidades da população mundial, em especial do Primeiro Mundo, como água potável, biodiversidade, gás e aquele que parece ser o menos importante, mas a meu ver é importantíssimo, os espaços vazios. Países superpopulosos como a China e a Índia, que abrigam 2,4 bilhões de habitantes, não estão conseguindo conter seu crescimento populacional e estudam há anos uma maneira de alocar esse excedente de pessoas. A Amazônia sempre esteve na mesa dos chefes desses países, e nossas Forças Armadas não estão suficientemente preparadas para conter uma possível invasão do nosso território. Agora voltemos nossos olhos para o crescimento populacional no Brasil. Alguns dados assustam. Em 1970, éramos 90 milhões de habitantes. Hoje nossa população bate a casa dos 180 milhões. A população brasileira cresceu de forma assustadora, assim como a massa de miseráveis. Sabemos que essa é uma responsabilidade de todos os governos, mas especialmente deste, e uma massa de miseráveis com título de eleitor na mão facilita a perpetuação deste grupo no poder (República Federativa do Brasil, Diário da Câmara dos Deputados, ano LXI, n° 024 07516-07517).

Agora a questão da nossa querida Amazônia. Acredito que já perdemos a Amazônia. Não temos mais capacidade de reagir. Se países como a China ou a Índia quiserem lançar ao longo do Rio Amazonas, Solimões ou Negro contingentes excedentes, o que faremos? (Bolsonaro) (República Federativa do Brasil, Diário da Câmara dos Deputados, ano LXI, n° 024 07516-07517).

Em junho de 2007, outra manifestação similar:

Por outro lado, temos aqui a riquíssima região amazônica, com toda a sua biodiversidade, gás, água potável, minérios e, o mais importante, no meu entender, levando-se em conta a população, grandes espaços vazios. Há notícias de que, há anos, alguns países pensam em alocar seu excesso populacional nessa área abandonada por nós. E, ao mesmo tempo, como todos sabemos, nossas Forças Armadas vivem em crise, movidas apenas pelo patriotismo (República Federativa do Brasil, Diário da Câmara dos Deputados, ano LXII, n° 119 33336).

Na retórica de Bolsonaro a Amazônia é um alvo de ameaças que justifica a manutenção e o fortalecimento do contingente militar. Bolsonaro fez sua carreira política como defensor dos interesses da corporação. Como presidente não é diferente: reforça a teoria da internacionalização da Amazônia ao mesmo tempo que traz mais de 3 mil militares para ocuparem cargos no governo federal (Oliveira et al.).

Em seu livro Geopolítica do Brasil, Golbery do Couto Silva, um expoente do regime militar no Brasil, trata a Amazônia como um deserto verde e afirma que a função do governo seria de incorporá-la à nação, ideia que foi adotada pelo governo militar, que assumiu em seu Conceito Estratégico Nacional “desenvolvimento de uma política ordenada de expansão e distribuição espacial da população, orientada e dirigida para a exploração do potencial de recursos naturais do país, em setores prioritários ou em regiões selecionadas, bem como para a ocupação racional e efetiva do território nacional”. Consolidou-se a ocupação da Amazônia como objetivo estratégico militar: um imperativo da própria segurança nacional.

A despeito dos números do desmatamento e dos fartos registros de violações de direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais, os militares ainda se orgulham dessa política. Prova disso é que, em novembro de 2020, quando o General Mourão, vice-presidente da República, no papel de presidente do Conselho da Amazônia, levou um grupo de embaixadores à região, um dos locais visitados foi o Projeto de Colonização Bela Vista, no Amazonas, criado em 1971. Na ocasião, Mourão ressaltou que se tratava de uma experiência de “regularização fundiária”, tema polêmico em função das flexibilizações na legislação federal que o governo defende. Valente inúmeras outras demonstrações de negacionismo da sua parte e do ministro das Relações Exteriores.

A visita foi uma tentativa de acalmar os ânimos da comunidade internacional quanto às intenções do governo federal na Amazônia, depois de uma sequência de situações vexatórias, desde o início de 2019, quando Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, paralisou o Fundo Amazônia, tentou interferir no monitoramento do desmatamento realizado pelo INPE e atuou de forma errática no enfrentamento das queimadas – entre inúmeras outras demonstrações de negacionismo da sua parte e do ministro das Relações Exteriores. Segundo Mourão, “o grande objetivo da nossa viagem era mostrar que o governo brasileiro não tem o que esconder e que nós estamos abertos a todo e qualquer diálogo necessário para demonstrar à comunidade internacional os nossos compromissos”. O roteiro da viagem se concentrou entre Manaus e Iauareté, na fronteira com a Colômbia. Em suma, os embaixadores sobrevoaram, sobretudo, terras indígenas, menos afetadas pelo desmatamento.

As estratégias discursivas do Presidente Bolsonaro, que chegou a publicar numa rede social que “o mundo” o estava acusando falsamente de destruir a Amazônia”, e que a “soberania da região e suas riquezas é o que, verdadeiramente, está em jogo”, esbarraram nos dados que os satélites não nos permitem ignorar. O desmatamento sem controle da Amazônia implica emissões de gases de efeito estufa, que agravam o problema das mudanças climáticas e a preocupação planetária, apesar de pouco resultar em medidas concretas de enfrentamento do problema, está longe de ser apenas retórica.

Não foi por outro motivo que o vice-presidente Mourão foi alçado à presidência do Conselho da Amazônia, consolidando a hegemonia militar sobre a agenda ambiental na região. A decisão do presidente de anunciar a (re)criação do Conselho da Amazônia, excluindo a participação dos governos estaduais que costumavam ter assento no Conselho, em janeiro de 2020, aconteceu em reação às pressões do público do Fórum de Davos sobre o Ministro da Economia que representou o país no evento. Bolsonaro buscou, assim, sinalizar uma mudança no tratamento da questão da Amazônia. Houve quem visse recuo do presidente e perda de poder do ministro do Meio Ambiente, mas, ao contrário, a manobra significou uma blindagem ao ministro diante da pressão da imprensa e da comunidade Internacional, que passaram a dirigir suas demandas e atenções para a vice-presidência, enquanto Salles seguiu trabalhando pela desregulamentação das normas ambientais.

É como disse Bolsonaro, em viagem aos Estados Unidos em março de 2019: “Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer” (Mendonça).

Garantia de impunidade

Os efeitos negativos do atual governo sobre a Amazônia não se efetivam apenas por atos e medidas. É também nos discursos que o poder destrutivo do governo se concretiza. Em abril de 2019, Bolsonaro disse, em vídeo divulgado na internet, que determinou a proibição de queima de veículos usados na exploração ilegal de madeira. O procedimento de destruir o maquinário dos criminosos ambientais está previsto na legislação ambiental brasileira desde 2008. A razão é que, na impossibilidade logística de apreender e retirar grandes maquinários de áreas remotas, a destruição dos equipamentos é a única forma de garantir que as atividades ilegais não serão retomadas naquele local.

A manifestação do presidente atendeu a um pedido de um apoiador de Rondônia, com o objetivo de desautorizar o trabalho de fiscais que, na véspera, haviam destruído caminhões e tratores apreendidos em operação do Ibama, dentro da Floresta Nacional do Jamari, no município de Cujubim. Bolsonaro afirmou que já havia mandado o Ministro do Meio Ambiente abrir um processo administrativo para apurar “o responsável”. “Não é pra queimar ninguém, nada né, ninguém não, nada, maquinário, trator, caminhão, seja o que for, não é esse procedimento, não é essa a nossa orientação”, disse o presidente (Bragança).

A declaração do presidente teve efeitos concretos. Em maio, Cujubim apresentou aumento de 455 % nos alertas de desmatamento emitidos pelos sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (DETER), do INPE, em relação ao mês anterior. O aumento nos alertas de desmatamento, entre os meses de abril e maio, foi 98 % superior aos ocorridos no mesmo bimestre de 2018.

A destruição de equipamentos, como escavadeiras, tratores, balsas, caminhões e outros veículos de grande porte usados nos crimes ambientais caiu pela metade em 2019. O Ibama destruiu 72 equipamentos desse tipo, apreendidos em flagrante com desmatadores e garimpeiros, o que representou redução de 50 % em relação à média anual de 144 entre 2014 e 2018 (Werneck, “Destruição de máquinas”).

Em abril de 2020, após uma operação em terras indígenas no Pará, em que foram destruídas 12 escavadeiras e vários outros equipamentos, o então diretor de fiscalização do Ibama foi exonerado. As máquinas estavam em garimpo ilegal, dentro da Terra Indígena Munduruku. Em agosto de 2020, o ministro do Meio Ambiente foi à região para se encontrar com os garimpeiros que, logo depois, foram recebidos, em Brasília, pelos ministros da Casa Civil, do Gabinete de Segurança Institucional e do Meio Ambiente. Segundo o INPE, os alertas de desmatamento na TI Mundurucu aumentaram 238 % entre março e julho de 2020, em plena crise sanitária da Covid-19. Quase todo o desmate vem do garimpo.

Em julho de 2019, foi a vez do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles se reunir com madeireiros, em Espigão d’Oeste (RO) (Folha de S. Paulo), 13 dias após um caminhão do Ibama ser incendiado durante operações realizadas naquele mês. Mais de 70 empresas madeireiras foram fechadas na operação. Na ocasião da visita, o ministro reconheceu a importância da produção madeireira no estado e disse que iria avaliar os pedidos feitos pela categoria. Mais uma vez o Deter acusou os efeitos do anúncio do Ministro. Em julho, Espigão d’Oeste apresentou um aumento de 332 % nos alertas de desmatamento em comparação com maio de 2019.

A dinâmica se repetiu com aliados de Bolsonaro, como o governador do Acre, que em julho de 2019 recomendou aos produtores rurais do município de Sena Madureira que avisassem a ele caso o Imac (Instituto do Meio Ambiente do Acre) estivesse multando alguém: “Me avisem e não paguem nenhuma multa”. Os alertas do Deter-B tiveram um aumento de mais de 5.466 %, logo após a visita do governador (Maisonnave).

O mesmo efeito pôde ser verificado em Novo Progresso, no Pará, quando o Ibama passou a divulgar antecipadamente os locais em que as operações de fiscalização ambiental aconteceriam. Com isso, os alertas de desmatamento aumentaram 484 % no município, em relação ao mês anterior.

A estratégia de estímulo à impunidade surtiu efeito e o governo de Jair Bolsonaro consolidou um novo patamar de destruição também dentro das áreas protegidas da Amazônia. O ano de 2020 foi o segundo pior em termos de desmatamento em terras indígenas e unidades de conservação desde 2008. Os 188 mil hectares de florestas destruídas nesses territórios – extensão maior que a cidade de São Paulo – representam 90 % a mais que a média do desmatamento entre 2009 e 2018, segundo análise realizada pelo Instituto Socioambiental (Souza et al.) com base na taxa oficial do INPE (PRODES). Apesar do aumento do desmatamento nessas áreas, elas continuam sendo fundamentais para proteção ambiental, uma vez que todo o desmatamento realizado em seu interior soma menos de 20 % do desmatamento total da Amazônia.

O discurso contra as políticas ambientais alimenta expectativas sobre a extinção ou redução de terras indígenas e de unidades de conservação, que antes não existia:

Com aquela conversa do governo federal, do ministro, de redução de 5 % das áreas indígenas, a gente está com essa esperança, essa expectativa, de que um dia aconteça, para realmente o governo legalizar o pessoal aqui dentro. Enquanto isso, a gente está ocupando aqui (G1).

A criação de unidades de conservação e a demarcação de terras indígenas constituíram importante estratégia no âmbito do PPCDAM, exatamente porque, ao destinar terras públicas para essas categorias de uso, o poder público inibe a possibilidade de titulação fundiária futura, o que desestimula a grilagem de terras públicas. Os especialistas estimam um custo de abertura de uma nova área na Amazônia em torno de 200 dólares por hectare. Trata-se de um investimento alto, que só se justifica com a perspectiva de titulação. O alto grau de invasões por grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais nas áreas protegidas decorreu dos discursos do governo, que sinalizaram a esses grupos a possibilidade de ganhos diretos. Dentre as medidas tomadas pelo governo que geram esse entendimento estão: pareceres para liberar madeira ilegal, projetos legislativos que ameaçam áreas protegidas, baixa execução do orçamento para fiscalização, redução das autuações e embargos por crimes ambientais, deslegitimação dos órgãos de monitoramento e baixa efetividade das operações militares de combate ao desmatamento.

Entre agosto e setembro de 2019, em função dos altos índices de desmatamento e queimadas, com forte repercussão no exterior, o governo autorizou o emprego das Forças Armadas no combate aos desmatamentos e as queimadas, por meio do instrumento da GLO –Garantia da Lei e da Ordem, no caso especificamente em matéria ambiental. O recurso a esse instrumento militar foi uma estratégia utilizada pelo governo para reduzir o papel do Ibama na fiscalização da Amazônia. No primeiro semestre de 2019, o Grupo Especializado de Fiscalização (GEF) do Ibama não realizou operações na região. As ações foram retomadas em função do escândalo das queimadas, mas só duraram até novembro, quando o próprio Bolsonaro ameaçou os fiscais: “Quem é o cara do Ibama que está fazendo isso?”, perguntou a garimpeiros, na porta do Palácio da Alvorada.

A participação das Forças Armadas nas operações de fiscalização ambiental sempre ocorreu, mas como apoio às ações coordenadas pelo Ibama, que tem competência formal para o trabalho de inteligência, definição de estratégias e lavratura de multas. Apesar disso, desde maio de 2020, o governo federal retirou do Ibama a coordenação das ações, transferindo a maior parte das responsabilidades das operações de fiscalização às Forças Armadas. A primeira operação coordenada pelo Exército terminou sem multas ou apreensões (Amaral).

Em julho de 2020, um grupo de organizações não governamentais apresentou ao Tribunal de Contas da União (TCU) um pedido de apuração da eficiência dos gastos nas operações do Exército de fiscalização ambiental da Amazônia, no âmbito da GLO. Denúncias publicadas pela Revista Piauí, em outubro de 2020 (Salomon, “Puxadinho militar”), apontam que as Forças Armadas estariam usando o dinheiro das ações de combate aos desmatamentos para reformar quartéis, inclusive fora da Amazônia.

A investigação do TCU se justifica porque,

somados os custos da operação Verde Brasil 2, os recursos recuperados pela Operação Lava Jato e a primeira parcela da encomenda de um satélite finlandês, os militares gastaram 589,7 milhões de reais. Enquanto isso, Ibama, ICMBio e INPE gastaram 176,6 milhões de reais no monitoramento e na proteção da floresta. Apesar da explosão dos gastos pelos militares, 2020 foi o ano com a pior taxa de desmatamento da Amazônia, desde 2008. A quantidade de focos de incêndio foi a maior desde 2010, de acordo com o Inpe (Salomon, “A gastança amazônica”).

Ataque às ONGs

Em setembro de 2020, a imprensa tornou público o plano de metas que o Conselho da Amazônia submeteu ao Ministério da Economia. As metas incluíam “renovação doutrinária” em órgãos como Ibama, ICMBio e Funai e aprovação do Projeto de Lei 2.633, que facilita a titulação de terras públicas invadidas, fomentando novos desmatamentos. Além disso, o documento mencionava a intenção de “obter o controle de 100 % das ONGs que atuam na Região Amazônica, até 2022, a fim de autorizar somente aquelas que atendam aos interesses nacionais”. Tal meta se relacionaria à ação de “criar marco regulatório para atuação das ONGs” expressa nos documentos oficiais do Conselho.

Dezenas de organizações da sociedade civil vieram à público repudiar e denunciar os riscos à democracia embutidos na proposta.

Os ataques e as perseguições do governo Bolsonaro à sociedade civil são uma lamentável constante em sua atuação política. Iniciativas com intuito de controle das ONGs já foram anteriormente apresentadas pelo Poder Executivo e rechaçadas pelo Parlamento Brasileiro, como no caso da Medida Provisória (MP) 870/2019. Também em dezembro de 2019, agentes da Agência Nacional de Inteligência (Abin) foram à Cúpula do Clima (COP25) para espionar as ONGs brasileiras ali presentes. Além disso, no Brasil, não foram poucas as vezes que o próprio Presidente da República desdenhou da Constituição, participando de manifestações cujos propósitos atentavam contra os demais poderes da União. Em declaração recente, Bolsonaro chegou a reclamar por não conseguir “matar esse câncer chamado ONG (ISA).

Controlar as ONGs é uma ideia fixa do governo Bolsonaro. Já na edição da Medida Provisória 870 o governo incluiu como atribuição da Secretaria Geral da Presidência, “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”. A medida feria a Constituição, que estabelece o livre direito à associação, além de constituir proposta pouco factível na prática é desnecessária, visto que os órgãos de controle, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas já detém poderes suficientes para cumprir a missão.

A mobilização das organizações conseguiu que o Congresso Nacional aprovasse uma nova redação para o artigo da Medida Provisória, que passou a determinar que à Secretaria Geral de Governo da Presidência da República compete “coordenar a interlocução do Governo Federal com as organizações internacionais e Organizações da Sociedade Civil que atuem no território nacional, acompanhar as ações e os resultados da política de parcerias do Governo Federal com estas organizações e promover boas práticas para a efetivação da legislação aplicável”.

Esbulho das terras indígenas

Outra proposta que encontra base na visão do período militar é o projeto de lei 191/2020, encaminhado pelo presidente à Câmara dos Deputados. A proposta pretende abrir as terras indígenas para diversos tipos de atividades econômicas por empresas não indígenas: garimpo, mineração industrial, exploração de petróleo e gás, construção de hidrelétricas e outras obras de infraestrutura, além do plantio de transgênicos.

O projeto também tenta legalizar garimpos, afrontando uma expressa determinação constitucional. A Constituição brasileira só prevê, de forma excepcional, a pesquisa e a lavra de minérios por empresas formais em terras indígenas, prevendo uma lei que deverá regulamentar as “condições específicas” em que essas atividades poderão ocorrer, além das já referidas no próprio texto constitucional, como a atinência ao “interesse nacional”, a aprovação prévia do Congresso Nacional, audiência às comunidades afetadas e, no caso de ocorrer a lavra, a garantida da sua participação nos resultados econômicos.

Porém, o projeto enviado ao Congresso não estabelece essas condições específicas, fragiliza as já dadas na Constituição e inclui atividades que só poderiam ser reguladas através de uma lei complementar. O projeto também desrespeita a consulta prévia e informada que é garantida aos Povos Indígenas pela Convenção 169 da OIT, Organização Internacional do Trabalho, autorizando a continuidade dos processos de concessão de exploração dos recursos naturais mesmo quando os índios não as autorizarem, gerando, assim, um risco fático, jurídico e de imagem que uma introdução forçada acarretaria às empresas.

A proposta do governo dispõe dos bens e direitos dos povos indígenas, assegurados pela Constituição, como se ainda estivéssemos na década de 70, quando o SNI (Serviço Nacional de Informações) chegou a controlar garimpos de ouro no que ficou conhecido como “Projeto Ouro” ou “Projeto Garimpo”, que mobilizou 148 mil garimpeiros, em dez estados, no governo Figueiredo. De 1979 a 1981, foram produzidas 24 toneladas de ouro.

A partir de maio de 1980, este órgão [SNI], autorizado pelo presidente da República, desenvolveu uma ação catalisadora, envolvendo vários organismos públicos, objetivando o controle e a assistência do núcleo de garimpagem que se formou em Serra Pelada (PA). Posteriormente, este controle foi estendido a outras áreas de garimpo, principalmente a da Fazenda Cumaru, no município de Conceição do Araguaia (PA), descreveu um relatório confidencial do SNI (Valente, “Teoria conspiratória”).

Políticas em destroços

Enquanto não consegue aprovar novas leis que concretizem os seus destrutivos objetivos para a Amazônia, o governo Bolsonaro segue a estratégia de desmonte das políticas e criminalização da sociedade civil. A não utilização do dinheiro existente, a exemplo do que fez com a desmobilização do Fundo Amazônia, é uma das formas que o governo utiliza para esvaziar a gestão ambiental.

Segundo uma nota técnica (Cardoso) do INESC, Instituto de Estudos Socioeconômicos, em 2020, a execução financeira do Ministério do Meio Ambiente foi de menos de 70 % do orçamento disponível, que já era o menor dos últimos anos. Os recursos destinados à fiscalização e ao combate do desmatamento diminuíram nos dois primeiros anos do atual mandato. Em 2018, foram autorizados R$110 milhões, em 2019, R$102 milhões e, em 2020, apenas R$76 milhões. O desmonte orçamentário, associado ao desmonte do arcabouço infralegal, está intimamente relacionado com o aumento do desmatamento, da grilagem e da violência rural.

Durante o período da pandemia, foi intensificado o padrão de desmantelamento da proteção ambiental e dos órgãos competentes. Um exemplo disso foi a redução de multas ambientais, combinada com a anistia para áreas desmatadas ilegalmente na Mata Atlântica.

Na política indigenista, o aparelhamento de cargos de chefia por militares e policiais federais, alinhados ao governo e sem experiência de trabalho com povos indígenas, é uma das estratégias de desmonte. O estabelecimento de medidas que relativizam os direitos indígenas e dificultam o cumprimento da missão do órgão tem sido constante. A Instrução Normativa 009/2020 da Funai, por exemplo, impede o atendimento a indígenas que ocupam áreas retomadas, ainda não demarcadas.

Desde o início do atual governo, o Ministro do Meio Ambiente deixou claro que sua prioridade seria destinar recursos para os proprietários de terras, reforçando o argumento, recorrente entre ruralistas, de que a aplicação da legislação ambiental restringe o direito de propriedade e deveria ensejar compensações aos donos de terras. Por isso, não é surpresa que, em 2020, por exemplo, a totalidade dos recursos disponíveis para o reconhecimento e a Indenização de quilombolas, foi destinado ao pagamento de desintrusões e de indenizações de benfeitorias a terceiros, ocupantes de territórios quilombolas.

É por isso, também, que a estratégia da política ambiental é concentrar esforços em um grande programa de pagamento por serviços ambientais, que prioriza remunerar proprietários de terras pela conservação de florestas em suas propriedades, o que é uma obrigação legal. Os mais de 40 % da Amazônia sob algum tipo de proteção legal, sejam terras indígenas ou unidades de conservação, ao contrário, viram os recursos e projetos, antes destinados à sua gestão, serem extintos ou modificados, reduzindo significativamente o aporte do poder público.

A militarização da questão socioambiental no governo Bolsonaro inclui a indicação de policiais militares para todas as diretorias do ICMbio, O governo também tenta aprovar no Congresso Nacional uma legislação que permita incluir as polícias militares dos estados na estrutura do Sistema Nacional de Meio Ambiente – em um caminho que visa a substituição dos fiscais ambientais por policiais, em uma estratégia que foi chamada por ambientalistas de fomento à criação de uma “milícia ambiental” (Werneck, “Projeto que militariza”). Os servidores públicos da área ambiental têm denunciado (Ibama) medidas de controle sobre sua atuação, censura prévia a trabalhos acadêmicos (Ascema Nacional) e métodos de perseguição aos que divergem. O ministro do Meio Ambiente tem usado a Advocacia Geral da União para intimar funcionários que o criticam, exigindo explicações sobre declarações dadas à imprensa (ClimaInfo).

Resistencias

Não se pode acusar Bolsonaro de não ser absolutamente sincero e explícito em relação as suas intenções para com a Amazônia, os povos indígenas e o meio ambiente. A situação geral das normas e instituições ambientais só não é pior pela resistência continua que a sociedade civil, em especial as organizações indígenas, tem imposto por meio de ações judiciais, mobilizações e campanhas junto à opinião pública nacional e internacional.

Os primeiros dois anos do governo Bolsonaro foram suficientes para desfazer a imagem e o papel de liderança do Brasil nas negociações climáticas e ambientais internacionais. Nunca foi tão evidente o papel que as temáticas socioambientais têm nas relações internacionais do Brasil.

Junto com a catastrófica gestão da pandemia, os temas de desmatamento na Amazônia e direitos indígenas estão no centro dos impasses em relação a algumas pautas prioritárias na política externa brasileira, como o ingresso na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a ratificação do acordo Mercosul – União Europeia e as relações bilaterais com os Estados Unidos, que elegeu Joe Biden com uma plataforma ambiciosa de enfrentamento das mudanças climáticas. A política ambiental brasileira foi determinante para a suspensão da análise da adesão do país à OCDE (Mello), criou um impasse para a aprovação pelos parlamentos na Europa, do acordo com o Mercosul (Shalders) e é uma das pauta de maior destaque das conversas entre o governo brasileiro e os Estados Unidos, demonstrando que a comunidade internacional reforça o consenso de que os efeitos daninhos de políticas nocivas para a Amazônia irão muito além das fronteiras do Brasil. Na Cúpula do Clima organizada pelo governo americano em abril de 2021 era esperado um acordo entre os dois países, que não se concretizou em função de uma ampla campanha da sociedade civil brasileira que mobilizou artistas e políticos nos dois países chamando a atenção para os riscos do governo Biden “confiar” em Bolsonaro. Apesar disso, as negociações entre os dois países continuam, visando a Conferência das Partes da Convenção de Clima em novembro de 2021 (COP 26). As consequências para a agenda climática do abandono das políticas de controle do desmatamento e do apoio oficial às práticas predatórias é um problema global, já que não só o Brasil não atingirá as suas metas de redução de emissões, mas também não dará sua contribuição para um mundo que consiga conter o aquecimento global (Rochedo et al.).

A realização da Cúpula nos EUA coincidiu com o momento de instalação no Congresso Nacional brasileiro, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação do governo na pandemia, cuja composição é de minoria governista. Dentre os alvos da CPI estão o ex-Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, general da ativa do Exército Brasileiro responsável pela maior parte das decisões políticas que levaram aos altos índices de contaminação e óbitos de COVID no Brasil.

A pressão sobre o governo Bolsonaro recai também sobre os militares, reforçando em parte o previsto pelo General Mourão em abril de 2019, quando, em evento nos Estados Unidos afirmou: “Se o nosso governo falhar, errar demais, porque todo mundo erra, mas se errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas. Daí a nossa extrema preocupação” (Orte). Ocorre que, seja no desmatamento, seja na Saúde, o problema está no que o governo “entrega”, que é exatamente o que promete.

Em contraofensiva ao momento de crise, o governo acirrou ainda mais a retórica contra o movimento indígena e as organizações da sociedade civil, promovendo inquéritos da Polícia Federal contra lideranças indígenas (Valente, “Documento”; Valente, “Mais um líder” por calúnia, em função de críticas ao governo e da acusação de genocídio. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) foi acusada pela veiculação da websérie Maracá – Emergência Indígena (APIB, “Agora é a vez”) realizada para “mobilizar nas redes apoio ao plano emergencial construído pelos povos indígenas para enfrentar este momento”, já o cacique Almir Suruí por ser signatário, junto com Raoni Metuktire de uma denúncia contra o presidente no Tribunal Penal Internacional (TPI) por sua política ambiental, “pleiteando o reconhecimento do ecocídio – destruição do meio ambiente em nível que compromete a vida humana – como um crime passível de análise pelo TPI (Oliveira, “Exclusivo”).

É nesse cenário de futuro incerto que a Amazônia adentra a estação das secas de 2021. As investigações da CPI da Pandemia vão disputar espaço nos noticiários com as imagens de desmatamento e queimadas, em meio a denúncias e perseguições políticas. Independente do que ocorra com o Brasil e a Amazônia, o saldo dessas contendas estará na pauta da COP 26 para o escrutínio mundial.