A mesma região sob um ângulo diferente mas igualmente intrigante

Delimitando o escopo e a escala do estudo

1Os Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia (STS) contam com uma vasta e longeva literatura. Ela aponta uma série de tendências e nos permite ver enquadramentos analíticos distintos; todos bastante esclarecedores sob seus respectivos ângulos. Sejam as “sociologias do conhecimento” da primeira metade do século vinte (à maneira Mannheim ou ao modo Merton), sejam os efervescentes “science studies”, da segunda, essa miríade de perspectivas de teoria e de método tem orientado a investigação de pesquisadores interessados ​​na dimensão contextual da prática científica – prática que também guarda uma clara (mas nem sempre realçada) dimensão de “lugar” (Smith e Agar, 1998).

2Costuma-se pensar, não sem razão, que os estudos envolvendo, de modo coordenado, as questões ciência, tecnologia e sociedade centram o foco de suas análises sobre temas tais como a “política científica” e os “discursos de autoridade” por trás da retórica dos cientistas e veiculados nos produtos que eles ajudam a conceber e difundir (Daston, 2009). Assim como é dado a ocorrer que nós, às vezes, pensemos que toda essa profusa vertente que elevou à condição de metaciências certos olhares vindos da História, da Sociologia, da Antropologia e mesmo da Psicologia, na verdade é efeito previsível das contestações ao projeto internalista da Filosofia da Ciência tradicional – em especial aquela, anglofônica, com seus matizes lógico-sintáticos (Lorenzano, 2011). Não são equivocadas essas impressões. E ambas podem ser sustentadas, uma vez que tanto a manifestação dos movimentos vinculados à Sociology of Scientific Knowledge, quanto os autores que personificaram a New Philosophy of Science, estavam em relativa sintonia em seu descontentamento com o excesso de formalismo das análises da ciência feitas até então. E daí o expressivo abandono dos exames sobre justificação lógica dos enunciados; daí o relevo ao caráter contextual das descobertas e dos experimentos, ao papel determinante dos valores de época (Adúriz-Bravo, 2007).

3Vejamos um rebatimento dessas abordagens em exemplar temático próprio à História da Geografia.

  • 1 Paris et le Désert Français: Décentralisation, équipement, population (Paris, Le Portulan, 421p., 1 (...)

4Após um período histórico muito emblemático, entre 1914-1918, geógrafos franceses jogaram importante papel no redesenho das fronteiras da Europa. Sua ciência geográfica, seu conhecimento de campo, estiveram presentes nos tratados pós-Primeira Guerra. E eles foram decisivos para a definição do futuro de países como a Romênia, por exemplo. Mais adiante, sob o regime de Vichy (1940-1944), um geógrafo francês, apesar do tom criticável de sua obra1, ganharia notável destaque: Jean-François Gravier (1915-2005). Ele personificou uma prática “não-acadêmica” da Geografia, mas, desde logo, uma vertente “profissional”. Por isso, foi recrutado por antigos Ministérios estratégicos franceses (o MRU, Ministère de la Reconstruction et de l’Urbanisme, e o Ministére de l’Équipement), onde contribuiu a que a expressão “planejamento territorial” fosse difundida, na década de 1940, junto à esfera política da tomada de decisão – fazendo com que o vocábulo “aménagement” chegasse a ser pronunciado em discursos por Ministros como Raoul Dautry (1880-1951), engenheiro titular da pasta MRU entre 1944 e 1946. Gravier teria promovido, assim, uma espécie de abordagem aplicada de escala macroespacial. Já no plano “microespacial”, profissionais da Geografia “appliquée” que acessoraram agora, não Ministros, mas Prefeitos e municipalidades foram aqueles tais como François Doumenge (1926-2008) – que também foi um acadêmico e desenvolveu trabalhos sobre pesca e oceanografia junto ao Departamento de Geografia da Universidade de Montpellier, entre as décadas de 1960 e 1980 (antes de atuar intensamente com geografia tropical, na Costa do Marfim e países do Pacífico Sul). Por cerca de quinze anos ele acessorou o prefeito de Montpellier em questões de urbanismo e projetos de parques (Robic et alii, 2006).

  • 2 Por exemplo, Jean Dresch (1905-1994). E isso acabaria tendo reflexos no ensino superior de Geografi (...)
  • 3 O livro mais célebre de Phlipponneau possivelmente seja Géographie et Action: Introduction à la géo (...)

5No entanto, é possível que esses dois nomes acima referidos (assim como tantos outros, de salientes atuações) não nos soem familiares, porque quando pensamos em “Geografia Aplicada”, na França, somos levados a aquiescer ao que alguns manuais aludem: ela estaria ligada a um nome em especial, Michel Phlipponneau (1921-2008). Ocorre que ele próprio, dada a sua (à época) menor expressão diante da magnitude de um verdadeiro mandarim chamado Pierre George (1909-2006), nem é tão divulgado nas historiografias. Já George sim, na medida em que encabeçou uma renovação do discurso geográfico francês. Um discurso mais politizado e congregador de pessoas afinadas com o ideario comunista2. Isso serve, de todo modo, para frisar o fato de que, por vezes, outsiders podem ver suas ações (por mais que francamente precursoras e merecedoras de destaque) ofuscadas, dado o holofote superconcentrado em outros atores. Phlipponneau, que se engajou firmemente no discurso em prol de uma Geografia voltada à ação – e fazendo isso em concomitância ao seu anseio de ver desenvolvida (quiça mesmo independente) a Região da Bretanha – restaria à sombra de George3.

6Considerando agora nossa investigação, entendemos que o fato dela constituir um estudo acerca das práticas de ciência geográfica, e priorizar uma análise de declarações que são essencialmente “não-axiomáticas” (posto que se tratam de narrativas sobre vivências, trajetórias e entendimentos), torna o conteúdo deste artigo suficientemente bem enquadrado no seio daqueles estudos “sociais” descritos acima – que sopesam a influência das conjunturas. Contudo, cabe matizar a direção particular de nosso objetivo aqui: a pesquisa se alinha numa preocupação com o potencial explicativo das circunstâncias (contextos social e espacial), mas como um modo alternativo de trazer à luz, ainda assim, os aspectos lógicos da ciência. Porque o lugar “Montpellier”, se ele revela uma sociologia da ciência (demonstrada por pesquisadores produzindo conhecimento de modo interativo), aponta não menos uma lógica da ciência (percebida, por sua vez, no compromisso dos pesquisadores com a consistência e a razoabilidade – quando, por exemplo, percebem as limitações dos instrumentos disponíveis dentro de seu campo familiar). Além do mais, se os lados tanto estrutural quanto contextual das ciências puderem ser explorados pela análise do percurso de personagens, provavelmente veremos ali que – tenha ou não havido uma deliberação consciente de sua parte – eles vão praticá-las numa dada “geografia” que, sem dúvida, não será um elemento inerte nas práticas e vivências (Reis Junior, 2018).

Montpellier, um lugar de várias geografias

7No início de 2017, fomos à cidade de Montpellier (Languedoc-Roussillon) para tomar conhecimento da natureza das pesquisas empreendidas por (a princípio) geógrafos lotados na Université Paul-Valéry (Montpellier III). Mas nossa estada ali terminou sendo grandemente frutífera também por um fato imprevisto. Nos vimos diante de pesquisadores cujas atuações remetem a uma questão de natureza epistemológica (rica, mas não sempre explorada): a de profissionais que provam uma excelente desenvoltura no âmbito do que tenderíamos a considerar o “domínio” de certa ciência, sem contudo possuírem uma formação acadêmica primeira nesta mesma jurisdição. Como se depreende, um tema que instiga discussões a propósito da demarcação teórico-metodológica dos limites fronteiriços entre as disciplinas.

  • 4 Cabe frisar, como boa ilustração disso, a UMR “ESPACE-DEV” (“Espaço a Serviço do Desenvolvimento”). (...)

8É certo que Montpellier, contemporaneamente, inscreve-se mesmo muito bem como uma “geografia” onde o espírito investigativo tradicionalmente ligado à ciência geográfica segue dando excelentes frutos – e sobretudo porque estes feitos resultam de um encontro fecundo entre geógrafos e “não-geógrafos”. Por exemplo, em Montpellier se encontram “Unidades Mistas de Pesquisa” fortemente baseadas num espírito interdisciplinar, e em que seus pesquisadores concertam seus projetos pelo uníssono dos ideários da gestão racionalizada e da extensão4.

9Porém, é preciso ter claro que a cidade de Montpellier ambientou, pelo menos, dois relevantes episódios de produção intelectual – marcantes para a história do pensamento geográfico francês. Distados em várias décadas, esses episódios referem-se a Maximilien Sorre (1880-1962) e a Roger Brunet; dois personagens de feitos emblemáticos, se consideramos que a Geografia que propunham, em respectivos contextos, conflitavam com a tradição de pesquisa geográfica até então vigorante. Sorre com seu pioneirismo no acercamento dos campos da Geografia e da Biologia; e insinuando, com isso, a utilidade em explorar uma zona de contato que legitimava uma espécie de ecologia humana atenta a questões sanitárias. Brunet com sua aposta nos expedientes que conferiam maior grau de sofisticação teórica às explanações geográficas.

10Antes de ser convocado para a Primeira Guerra, Sorre esteve por alguns anos em Montpellier. E é essa cidade que ambienta algumas das ideias pelas quais, no futuro, seria reconhecido – em especial, a concepção de que as capacidades profissionais do geógrafo se alargariam positivamente se ele passasse a estar bem instruído sobre os problemas advindos das relações entre, de um lado, o corpo, a saúde física e mental, e, de outro, as condições do meio ambiente e as flexibilidades com as quais a variedade de povos se adaptaria a ele. A concepção de que os modelos de observação e experimentação praticados pelos biólogos poderiam ser adotados pelos geógrafos. E sabemos como os feitos e esforços de Sorre (conquanto não devidamente valorizados por seus próprios pares geógrafos) redundaram em terminologias inéditas e de alto potencial replicativo: complexe pathogène, paysage épidémiologique, système éco-épidémiogène, pathocénose (Froment, 1997).

  • 5 O Grupo perdurou até o final dos anos 1990, tendo sido também comandado por nomes como Hervé Théry, (...)

11Quanto a Brunet, que foi um dos principais fundadores da revista L’Espace Géographique – num contexto em que se demonstrou atento aos ganhos trazidos pela Géographie Théorique et Quantitative –, Montpellier significou para ele uma “geografia” onde (desprendidos da influência exercida por Paris) dois empreendimentos poderiam ser executados: a refundação do projeto clássico das “Géographies Universelles” e a criação de uma “Maison de la Géographie”. Para tal, Brunet estabeleceria em Montpellier, em meados dos anos 1980, o “Grupo de Interesse Público” GIP-RECLUS; a instituição que dirigiria uma série de publicações consagradas à difusão de conhecimentos e métodos5.

  • 6 Uma sua obra bastante diferenciada, para a época em que veio a público, é Espace et Santé: La géogr (...)
  • 7 Uma sua publicação clássica foi La propriété foncière des citadins en Bas-Languedoc, aparecida no c (...)

12Montpellier, então, por algum tempo, destacou-se pelos estudos de Geografia Biológica. Essa primeira insígnia da cidade na prática da ciência geográfica deve-se, como aludido antes, a Sorre, mas também a profissionais que seguiram um pouco neste domínio: considerando o “environnement biologique” sob o ângulo particular dos problemas de saúde. Foram os casos de René Lamorisse (1928-1977), voltado para os aspectos agrário e populacional, e depois Henri Picheral, mais explicitamente centrado nas geografias “médicale” e “sanitaire”6. Essa primeira originalidade de Montpellier foi sólida, é claro, por efeito de um trabalho de investigação em parceria com médicos locais, interessados em estudos de epidemiologia – dado, aliás, o fato de que a cidade conta com uma Faculdade de Medicina cuja fundação remonta à Idade Média e é reconhecida até hoje em toda a Europa. Outro componente histórico da geografia “montpelliéraine” são os estudos urbanos. Estes, bastante devidos à atuação de Raymond Dugrand7 (1925-2017), cuja Tese, datada dos anos 1960, foi consagrada à rede urbana da Região do Languedoc – tema bastante inovador para aquela época, que de modo semelhante só viu análogos com os trabalhos de Bernard Kayser (1926-2001) e Michel Rochefort (1927-2015) sobre, respectivamente, os “réseaux urbains” da Costa Azul e da Alsácia (embora, é claro, o urban network já se encontrasse em pleno desenvolvimento nos países anglo-saxões). Contexto, portanto, em que as antigas monografias urbanas são deixadas de lado, posto que se debruçavam sobre as cidades enquanto tais; quer dizer, como casos “uniques” (Deneux, 2006).

13E a terceira “especialidade” da Geografia praticada na cidade viria a ser o “Aménagement du Territoire”; o planejamento territorial, ou o interesse por estudar a estruturação do território a partir das cidades e sua rede – eixo de pesquisa consolidado muito em função das pesquisas de Jean-Marie Miossec.

14Voltando-nos agora à nossa investigação propriamente (e a nossos contemporâneos personagens), informamos que, para uma radiografia minimamente fiel do percurso de cada um dos três, foram registradas entrevistas; bem como foi examinado um conjunto de publicações (livros e/ou artigos) que os têm como autores. Frédéric Leone foi entrevistado na manhã do dia 2 de Fevereiro de 2017; Raphaël Mathévet na tarde de 13 de Fevereiro; e Jean-Marie Miossec na manhã de 15 do mesmo mês e ano. Para cada uma dessas breves radiografias, procuramos mesclar trechos traduzidos de seus depoimentos com excertos originais de alguma de suas publicações. (Registros de áudio e imagem captados via dictafone iPhone 4, modelo A1397).

Miossec, um geógrafo de “transição”

15A Geografia acadêmica mais recente de Montpellier tem como um importante ator local, Jean-Marie Miossec. Porque mais além deste personagem haver tido um papel de relevo no âmbito político-administrativo (ele foi Reitor da Universidade Paul-Valéry, entre 2003 e 2008 – temporada em que comandou importantes reformas estruturais nos campi da instituição), Miossec ilustra uma das três tendências que caracterizam a ciência geográfica produzida e praticada em Montpellier.

16“Envolva-se com a cidadania!” (Impliquez-vous dans la vie citoyenne!) – uma frase sua, em tom imperativo, marcou nossa conversa. Miossec, que teve professores que lhe recomendaram não se comprometer com a política: a ciência estaria sempre acima disso. Mas logo se deixou seduzir por certos outros mestres. Professores que, ao contrário, estimulavam uma infiltração do cientista no cotidiano vivido dos cidadãos. “Se o geógrafo é um dos que melhor explicam como a cidade se organiza, não há por que não participar disso” [Miossec (Entrevista 15 fev. 2017, tradução nossa)].

17Miossec está situado entre aqueles geógrafos que, apesar de formados ainda numa base clássica generalista (ele realiza sua graduação entre, aproximadamente, os anos 1965 e 1969), dadas as conjunturas contemporâneas, terminaram desviando o olhar aos poucos. Preocupou-se, então, com as questões da “gestão” e “governança” do território; tendo apontado suas investigações para os âmbitos, a princípio, do urbanismo e dos serviços, e desenvolvido pesquisas especiais no setor do turismo em zona litorânea (Miossec, 1977) – fatos que estreitaram seus laços com realidades do mundo árabe mediterrâneo, por exemplo (Tunísia, Marrocos, Argélia). Ali Miossec investigou redes urbanas e a organização espacial de áreas metropolitanas (Rabat e Casablanca); e os intrigantes paralelismos entre tradição e modernidade industrial, como no caso tunisino (Miossec, 1999). Destaque-se também que Miossec desenvolveu importantes estudos que, tratando de “geohistória”, demonstram os desafios de ordem social e política envolvidos nos processos de regionalização e planejamento territorial (Miossec, 2008).

18Contudo, ainda que parecendo ser essencialmente um geógrafo “humano”, nos frisou que permaneceu sempre (e aquela sua formação generalista cooperou para isso) um profissional que enxerga os “milieux” como, simultaneamente, um meio humain e physique. Isso teria restado intacto, então, no seu modo de praticar a Geografia. A virada ou ruptura com o tradicionalismo teria ocorrido, precisamente, quando do interesse pelos fatores “aménagement” e “gestion” – ainda pouco explorados pelos geógrafos franceses na época em que Miossec era um jovem graduando.

Entre 1965 e 1980 é justamente o grande período em que, na França, ocorre um questionamento da Geografia. Passamos de uma Geografia tradicional, clássica (aquela que haviam me ensinado) a uma Geografia moderna, mais teórica, mais quantitativa. Isso também contribuiu à evolução do meu pensamento. [...] Pierre George, Jacqueline Beaujeu-Garnier são os grandes antepassados. Depois chegaram aqueles que tinham uma visão mais sistêmica [...] como Roger Brunet, com uma esquematização das visões de espaço e de mundo. [...] Em todo esse período de maturação, dos anos 1970 aos 1990, houve tendências extremamente variadas. Houve essa tendência quantitativa, de um lado; de outro lado, houve um “divórcio” na Geografia: aqueles que faziam geografia física se distanciaram muitíssimo daqueles que faziam geografia humana. A unidade da Geografia “rachou” neste momento – o que me inquietava e me colocou alguns problemas. [...] Mas houve em seguida uma grande reação à geografia quantitativa, [vista como] seca demais, teórica demais. E veio uma Geografia muito mais “sensível”, muito mais qualitativa e comportamental. Uma Geografia das representações. [Miossec (Entrevista 15 fev. 2017, t.n.)].

19Miossec, como outros, teria então seguido essa evolução em “três tempos”, se adaptando ao que eles preconizavam: do tradicionalismo vidaliano à melhor sistematização via conceito de “organisation de l’espace”; deste ao de “espace géographique”; e desta fase à preocupação mais recente com o “territoire”. Da etapa de formação nos preceitos clássicos da geografia francesa guardou o gosto pela abordagem regionalista e a reverência ao olhar histórico que deve ser lançado sobre ela (Miossec, 2009b). Quando de uma etapa de assimilação e prática da nouvelle géographie redifundida por Brunet, Miossec participou do grande projeto dirigido por este, a Géographie Universelle. E as discussões teriam sido bastante duras ali. Contradizendo a imagem veiculada pelas anteriores “GUs”, todos os países seriam mesmo, no final das contas, semelhantes? Em toda parte, relações centro-periferia, influências norte-sul, gradientes comuns? Aparentemente, Brunet recusava a dimensão histórica, geradora de idiossincrasias micro e macrorregionais – e Miossec guardou um espírito de oposição a essa espécie de raciocínio tão caro àquele que chegou a ser, à época, o grande personagem da géographie théorique francesa.

20As “asperidades” que o modelo generalista mascarava precisavam, a seu juízo, ser consideradas. Miossec, que diz ter um declarado interesse pelos olhares humanista e cultural. Sem desconsiderar o “substratum naturel”, levar em conta a economia, a antropologia, a sociologia. Miossec nos disse ter chegado a realizar simulações gravitacionais à la Brian Berry, pois estiveram “à la mode”. No entanto, o giro para o tema do território e, mais particularmente, sua “gouvernance”, ressaltou o fato de que, por se tratar ali de uma porção de espaço que é apropriado, uma administração sensível à necessidade de articular as diferentes formas de poder precisa ser buscada.

Imagem 1 – Jean-Marie Miossec

A mesma região sob um ângulo diferente mas igualmente intrigante

[foto de nossa autoria (15 fev. 2017)]

Leone, um geólogo que descobriu na geografia os “riscos”

21Frédéric Leone é geólogo, mas com uma formação geral no campo mais largo das geociências: aliou aos estudos de geologia fundamental, também aspectos da geofísica e geoquímica. Seus trabalhos de pesquisa acabaram se situando numa “géographie des risques naturels” por efeito de que esta era (e segue sendo) uma de três especialidades abertas aos geólogos franceses; isto é, a problemática dos riscos naturais apresentou-se como uma alternativa aos estudos de geotecnia ou de hidrogeologia. E Leone dá este contorno especializado em seu último ano de graduação, tendo tomado ciência (o que até então ignorava) de que geógrafos – notadamente geomorfólogos – trabalhavam com o tema dos “riscos”; envolvidos com sua cartografia e prevenção. Voltou-se para a Geografia porque lhe pareceu que ela tinha o que dizer no campo da ciência aplicada. E seus Mestrado e Doutorado seriam já resultado deste “changement de discipline”.

Isso foi a revelação. A “revelação” porque eu fui de uma abordagem muito técnica (digamos, muito “desumanizada”) a uma abordagem de uma enorme riqueza; com problemáticas sociais, principalmente. Sem, no entanto, perder contato com a Geologia. Descobri toda a riqueza da Geografia; uma disciplina verdadeiramente de interface e bastante adaptada à análise de riscos, posto que quem fala em risco, fala ao mesmo tempo em construção social e em fenômeno natural. Nos desafios enfrentados por populações vulneráveis e nas decisões por trás disso. [Leone (Entrevista 02 fev. 2017, t.n.)].

22Seu percurso definitivamente o fez ancorar junto à Geografia. A Tese, defendida em 1996, tratou de um tema dúplice que mantivera desde então em sua alça de mira: “risco e vulnerabilidade” (atentando-se para o caso dos deslizamentos e sua percepção por parte dos atores implicados). Já professor universitário, passaria a atuar na formação de jovens nas áreas de geografia física, cartografia e sistemas de informação geográfica; sendo que centrando suas abordagens aplicadas no tema da “gestão de riscos”. Enquanto investigador, tem desenvolvido pesquisas sobre avaliação e modelagem dos impactos das catástrofes naturais junto aos territórios – o que o coloca entre aqueles que praticam a Geografia em suas importantes extensões pragmático-aplicadas: a geração de informações úteis ao tomador de decisão. Faz isso se acercando de uma espécie de linguagem sistêmica que viu revitalizar seu mote da “integração” por uma nova semântica: “risque”, “vulnérabilité”, “résilience” ... uma tríade que coordena dinâmicas de ordem e desordem, agora numa perspectiva mais antropocentrada. Leone faz parte, então, dessa geração de geocientistas que põe os modelos teóricos a serviço da resolução de problemas práticos: considerando a fragilidade estrutural das construções, as chances de ocorrência de inundação; gerando cartografias úteis ao desenho de estratégias de prevenção ou evacuação. Tudo com o objetivo de que o trabalho científico, explorando os protocolos metodológicos dos mapeamentos e das análises quantitativas, confira um aporte efetivamente útil para assistir a gestão de crises (Leone et alii, 2013).

23Chegou à Universidade Paul Valéry em 2001, quando, havia já alguns anos, as abordagens sobre riscos tinham deixado o domínio quase exclusivo dos geocientistas e geógrafos ocupados com temas essencialmente pedológicos e geomorfológicos. Tratava-se da inserção da ideia de “vulnérabilité” – que ampliara a cena e o escopo do debate. Então, num contexto em que se dava a emergência de uma nova subdisciplina, Leone pôde contribuir a que Montpellier se instituísse como uma escola nacional de “Géographie des Risques”, tornando-a um polo de incorporação e impulso a essa renovação dos estudos integrados sobre o tema. Formava-se ali uma unidade com profissionais cientes de que só uma abordagem mais holista permite descrever e analisar sistemas tão complexos, como o das organizações territoriais – realidades para as quais a disponibilidade de uma ciência aplicada (isto é, apta a calcular tomadas de decisão mais otimizadas) poderá fazer a diferença entre o contorno, a tempo, de um episódio “imprevisto” (porém calculado) e uma depois lamentada catástrofe.

24Na chegada ajudou a criar o Laboratório “GESTER”, “Gestão Territorial” (em 2002), o qual se converteu na Unidade de Pesquisa “GRED” (Gouvernance, Risque, Environnement, Développement) – unidade cujo programa de pós-graduação vem formando desde então muitos mestres e doutores; promovendo parcerias entre franceses e estrangeiros. A grande qualidade desta instituição está em seu caráter efetivamente transdisciplinar, estimulando a aproximação entre as ciências sociais, ambientais e da vida.

Nós fazemos aqui geografia aplicada. Que se nutre de um “pensamento geográfico”, mas que é bastante aplicada. Através de ferramentas que dominamos (imagens espaciais, sensoriamentos) e de atores aos quais elas se destinam. Trabalhamos bastante, portanto, com o acompanhamento das decisões das autoridades. Na França, me parece que a Geografia sofre um pouco com a imagem de disciplina “escolar”, de “colégio” [...] Em Montpellier [entretanto], a Geografia é percebida (por nossos estudantes, em todo caso) como uma disciplina pragmática. E a prova é que nosso Mestrado coloca os estudantes facilmente no mercado de trabalho. [Leone (Entrevista 02 fev. 2017, t.n.)].

Imagem 2 – Frédéric Leone

A mesma região sob um ângulo diferente mas igualmente intrigante

[foto de nossa autoria (02 fev. 2017)]

Mathevet, um naturalista que encontrou na geografia o “humano”

  • 8 “L’intendance est [...] une forme de protection, de planification et de gestion responsable de l’en (...)

25Raphaël Mathevet, ecólogo de formação, é um jovem pesquisador pertencente aos quadros do CNRS. Sua produção intelectual trata da dinâmica de sistemas socioecológicos; com um interesse temático envolvendo as questões ligadas à conservação – para isso, mobilizando uma série de conceitos que, contemporaneamente, vêm ganhando destaque no pensamento ecológico de corte híbrido (pragmático, mas humanista): “resiliência”, “modelagem participativa”, “solidariedade ecológica”, “intendência”8.

26Mathevet intercambia, com frequência, com geógrafos igualmente interessados em conservação da natureza. Essa proximidade com a Geografia e demais pesquisadores devotados ao estudo do quadro ambiental efetivou-se (a exemplo do caso Leone) a partir do Mestrado – rumo que tomou porque se encontrava já bastante saciado com os saberes exclusivamente centrados no “fonctionnement écologique” do meio ambiente, acumulados desde a graduação. Percebera que faltava o conhecimento adequado a “résoudre les problèmes” deste mesmo meio ambiente: compreender as ações humanas! Para tal, imergiu nos campos da antropologia, da ciência política, da sociologia e economia ... até perceber que a Geografia (disciplina que lhe fascinara já desde o ensino secundário) seria o campo que lhe permitiria “varrer todas as dimensões”. O mundo vivo, decerto; mas igualmente a ocupação das paisagens, do passado ao presente. Entender as mudanças socioambientais de longo-prazo a partir das histórias ecológica e político-econômica – de hábito, tratadas separadamente.

Foi aí que aconteceu a transição. Para mim foi uma revelação. Eu me disse: se eu quiser mesmo contribuir à sociedade e ao conhecimento, é preciso que eu trabalhe na interface homem-natureza. Não podia mais permanecer só na natureza, como se o aspecto humano fosse uma “caixa-preta” que não se domina. [Mathevet (Entrevista 13 fev. 2017, t.n.)].

27Os procedimentos “clássicos”, que insistiram, por muito tempo, na distinção entre o estudo das espécies locais (via conceito-chave de écosystème e mediante métodos e instrumentos ancorados nas ciências da vida) e o estudo dos usos e representações sociais da natureza (por sua vez, dirigidos pelas várias perspectivas das “SHS” – sciences humaines et sociales), teriam perdido o sentido (Mathevet, 2010).

28Os estudos iniciais de pós-graduação realizou em Lyon e Toulouse, já totalmente imbuído de um desejo de interfacear saberes. Em meados dos anos 1990, Mathevet, por exemplo, trabalhou com um campo de discussão que relacionava agricultura e meio ambiente. Sua instrução de base no universo naturalista semeou-lhe, de saída, algumas faculdades analíticas que seriam remobilizadas. A approche systémique, uma delas. Porque a Ecologia lhe habilitara um olhar esquemático sobre as interações ecossistêmicas – um primeiro passo importante. Mas dado que o modelo teórico dos ecólogos punha em caixas-pretas as “affaires humaines” (reduzindo-as a meras flechas exteriores, eventualmente intervenientes), Mathevet quis buscar uma modelagem mais completa e fidedigna; que ressaltasse o papel na verdade determinante daquelas misteriosas e inexploradas “boîtes”. Explicar a dinâmica ecológica tendo claro o papel que podem ter nisso conflitos mal-resolvidos que estão relacionados, por exemplo, com reivindicações de propriedade ou com o acesso a recursos naturais. Pareceu-lhe evidente que uma “ecologia política” tinha muito a dizer para um avanço esclarecido – seja de uma política de conservação, seja de uma ciência da biodiversidade. E, para isso, seria importante passar a ver os quadros ambientais contemporâneos como resultantes presentes de forças socioecológicas do passado; forças que terminaram criando situações restritivas hoje experimentadas.

Conservation biologists, land management advisors, and policy makers often view environmental problems ahistorically, prioritizing immediate, recent, or proximate political and or ecological drivers. The origins of problems, however, often lie in deep-rooted, invisible, systemic conditions and historical conflicts, claims, and changes in uses and controls over the environment or its component resources. (Mathevet et alii, 2015, 1).

29Daí a adoção dos conceitos de “éco-socio-système” e “système socio-écologique”, na transição entre os anos 1990 e 2000 (contexto em que uma série de outros termos de intenção análoga fervilhava no discurso acadêmico), e, em seguida, o de “système multi-agents” – agora já num propósito de fazer simulações computacionais das interações entre fatores humanos e não-humanos. Neste mais recente estágio de seu pensamento sistêmico (poderíamos dizer “terceiro”), Mathevet pratica uma abordagem científica de natureza “construtivista” – posto que, além de serem estabelecidos pelo cientista os parâmetros da realidade estudada, é preconizada uma espécie de modelagem participativa (modélisation d’accompagnement), em que a ideia é elaborar o modelo com as pessoas. E promovendo a que os atores locais se sintam implicados numa aprendizagem coletiva; disto redundando decisões mais robustas. “Creio que [hoje] não é operacional, nem produtivo, [esse] não querer que as ciências sociais e naturais se relacionem. Afinal, elas evoluíram tanto.” [Mathevet (Entrevista 13 fev. 2017, t.n.)].

Imagem 3 – Raphaël Mathevet

A mesma região sob um ângulo diferente mas igualmente intrigante

[foto de nossa autoria (13 fev. 2017)]

Analisando os possíveis “universais” que os casos veiculam

30Duas interessantes questões, com as quais tivemos o acaso de nos deparar nessa estada em Montpellier, constituem debates tradicionais dentro da ampla discussão sobre natureza da ciência: (i) quem são efetivamente os sujeitos que produzem e praticam o conhecimento que está vinculado a um dado campo do saber? e (ii) quão mais virtuoso (ou contestável) é o trabalho que o cientista executa, se guiado por finalidades sociais e/ou práticas?

31Quanto à primeira questão, pode soar a princípio alarmante que “não-geógrafos” estejam provando ser bastante exímios naquilo que, por conceito, está inscrito nas jurisições da ciência geográfica: a representação espacial das formas de interface natureza–sociedade. Como pode soar constrangedor que sujeitos que não possuem uma formação primeira em Geografia, ostentem como “geográficos” os relevantes trabalhos que realizam – e que, muitas vezes, nós mesmos, geógrafos de “primeira hora”, negligenciamos ou sequer intuímos. Um possível efeito do fato de que alguns de nós abandonaram, infelizmente, as abordagens integradas – percebidas como imprescindíveis por demais cientistas. Geógrafos, afinal, desertaram da essência do “geográfico”?

32Quanto à segunda questão, ela abre, no domínio da análise epistemológica, uma via para a discussão dos aspectos externalistas da ciência: por exemplo, acerca do tema do alinhamento ideológico dos pesquisadores. Assim, se em Miossec visualizamos uma trajetória feita de assimilações refinadoras (não obstando, porém, a preservação de eixos-pivô claramente tradicionalistas), é notório que ela apontou para um intencionado compromisso com abordagens menos abstratas; isto é, mais afeitas ao prestadio ou solidário – analogamente aos seguintes dois personagens, nos quais também enxergarmos esse pendor para a dimensão de uma ciência guiada por propósitos e demandas.

33Mas o que os casos de Leone e Mathevet nos exemplificam é, além do mais, o fato de que essas suas inserções no domínio de uma geografia aplicada são, na verdade, efeito auspicioso de uma compreensão talvez ainda não alcançada pela maioria dos geógrafos. Mais do que a necessidade, a efetiva possibilidade de articular os instrumentos tecnológicos e os modelos teóricos (ainda que naturalistas) ao sentido empático dos fenômenos ... e entendendo que, uma vez operada essa conciliação entre racionalidade e sensibilidade, estaremos praticando ciência geográfica!

34Leone está convencido de que a aquisição de informações mediante concepção, teste e aperfeiçoamento de ferramentas e métodos é decisiva para constituir os meios que limitarão ao máximo as incertezas e ameaças. E que um investimento nosso nessa perspectiva de ciência aplicada rende importantes frutos: por exemplo, o papel coadjuvante do pensamento geográfico na viabilização de políticas públicas a ver com segurança socioambiental. Mathevet lamenta a inexpressiva incursão dos geógrafos mesmos (franceses, em particular) nas biologias animal e vegetal – o que determinou a baixa presença destes profissionais, num primeiro momento, nos movimentos de “protection de la nature” e, num segundo, nos de “conservation de la biodiversité”. Lastima, portanto, sua negligência para com o interessante e fecundo hibridismo entre os campos da Ecologia e da Geografia.

35O que, de todo modo, os três personagens expressam é o potencial que trajetórias ou percursos individuais têm para a exploração de problemas metacientíficos. Isto é, enquanto exemplares férteis da experiência que os pesquisadores têm com determinadas questões bastantes próprias à natureza da ciência; as quais, por conseguinte, tendem a se replicar em várias “geografias” da prática científica. Neste sentido, o fator propriamente geográfico jogaria o papel de demonstrar ao epistemólogo os, ainda assim, ricos matizes manifestos na replicação dos referidos problemas. Em outras palavras, se é demonstrável que uma questão-chave pode ser evidenciada, por exemplo, tanto em São Paulo quanto em Montpellier – digamos, a articulação da pesquisa fundamental com projetos desencadeados por demandas sociais –, é igualmente provável que, orientados por esse mesmo universal, “paulistanos” e “montpelliérains” o cumpram a partir de condicionantes atrelados a respectivas histórias locais da ciência.

36Miossec, Leone e Mathevet são praticantes de ciência que se constituem exemplares comprovadores de uma hipótese: pela via de seus pensamentos e ações, replicam aspectos genéricos da produção do conhecimento.

  • 9 Sua Tese gerou um livro, publicado pela célebre casa editorial parisiense L’Harmattan (Développemen (...)

37Na visita ao Laboratório GRED, ficamos sabendo que uma jovem pesquisadora brasileira havia passado alguns anos ali; tendo desenvolvido (e defendido, no ano de 2013) uma Tese de Doutorado. Fernanda Moscarelli, uma arquiteta e urbanista de formação, personifica igualmente, e bastante bem, esses sujeitos que (um pouco ao sabor de contingências e felizes acasos) acabaram se acercando da ciência geográfica; e hoje a praticam com notável desenvoltura. Num posterior encontro com a hoje Professora Moscarelli, ela nos contou de sua predileção pelo aspecto pragmático da ciência; de sua concordância com uma ciência aplicada carregada de valores político-sociais, vislumbrando a compatibilidade entre o discurso de um planejamento “socialmente sensível” e o instrumental técnico do geoprocessamento. Bem, sua pesquisa de doutoramento se deu sob a orientação do Professor Miossec; e Montpellier constituiu, em sua história pessoal, a “geografia” onde isso pôde se confirmar como possível: refletir modos de articular os ideários da sustentabilidade, do participativismo e da governança urbana9.

38É bem conhecida a aresta de contato entre arquitetos e geógrafos. “O urbano” engendrou já muitos feitos intelectuais e práticos; seja de modo independente ou em cooperação. Mas é sabida e documentada, igualmente, a afinidade de geólogos e ecólogos com a Geografia. Mais ainda quando, sob posturas engajadas, lhes ocorre a percepção de que há um campo comum e frutífero (de ideias e de ferramentas) a ser explorado. Daí Leone e Mathevet, a exemplo da jovem arquiteta, inclinados a uma abordagem pragmática, interdisciplinar e aditivada de valores (sociais e/ou ecológicos), terem divisado a sintonia possível entre as ferramentas técnicas e os projetos e políticas. Todos parecem ter notado um trunfo enraizado na ciência geográfica. E não estranha que os dois não-geógrafos falem justamente em “revelação” ao se referirem à Geografia. Disciplina que coordena mapeamentos informativos, estudos de condições geofísicas, proposição de estruturas mais sustentáveis, etc. Em certo sentido, esses personagens “informados geograficamente” (não apenas pela linguagem cartográfica, mas sobretudo pelo olhar de interface ambiente–sociedade) passaram a praticar uma espécie de “engenharia macia”. Alinhamento que viria a ser abastecido por contatos subsequentes com metodologias e literaturas distintas daquelas previsíveis para quem tinha diante de si opções mais “clássicas” a escolher – como as trilhas separatistas do relatório geotécnico, do laudo ambiental ou do projeto arquitetônico.

39No mais, é patente nos personagens o envolvimento com o que é societal; com o que reverbera em métodos menos diretivos e mais concertativos:a defesa de projetos collectivement construits (Miossec, 2009a, 31), a necessidade de “éthiques environnementales (Mathevet, 2010, 443), a consideração de “populations vulnérables” (Leone et alii, 2013, 520), a identificação de “processus ségrégatifs” (Moscarelli, 2016, 203).

Considerações finais

40Neste artigo subjaz um postulado. Os praticantes de ciência podem nos oferecer, em suas condutas e pensamentos “próprios”, exemplares demonstrativos sobre o quanto certos aspectos da produção do conhecimento encontram-se visivelmente replicados em demais biografias. Ou, ainda, apontar que essas semelhanças só não definem “universais” da ciência porque na verdade tenderão a se revelar por matizes distintos, conforme as circunstâncias dadas – e daí, aliás, o potencial explicativo da chamada “geografia da ciência”. Porque as conjunturas espaciais poderão nos sugerir que os lugares, mais do que simplesmente “situarem” os sujeitos, demonstram seus trânsitos, suas trocas e, em última análise, demarcam a atmosfera desde a qual eles (por decisão planejada ou por decorrência de episódios imprevistos) promoverão certos estilos de prática científica.

41Mesmo que as investigações sobre história local da ciência se caracterizem por dar voz aos indivíduos que a experienciam via trajetória pessoal (contextualmente condicionada), é interessante notar o quanto elas podem trazer à tona também a manifestação de questões que transcendem a qualquer idiossincrasia; e que denotam, portanto, os aspectos mais gerais da natureza da ciência. Logo, essa modalidade de análise epistemológica que procuramos exercitar, embora por ela tenhamos desejado frisar o caráter condicionante da “atmosfera do lugar”, concerta mais de uma dimensão significativa para o contexto espacial. O lugar “Montpellier” é revelador de uma sociologia, mas também de uma lógica da ciência, posto que ali, por um lado, determinados sujeitos interceptam suas trajetórias, intercambiam e produzem conhecimento; e, por outro, resulta dessa imersão comunitária concepções de ordem reflexiva que são amplamente replicáveis. No caso, os personagens com os quais interagimos (independentemente de podermos chamá-los outsiders, coadjuvantes, anônimos etc.) nos demonstraram a prevalência de três questões-chave, muito caras ao debate sobre natureza da ciência: 1ª) o comprometimento do cientista com as perspectivas prática e aplicada do seu campo de saber; 2ª) seu engajamento num estilo de ciência extensionista e sensível ao ideário do participativismo; e 3ª) um mesmo campo de saber sendo alvo de práticas transdisciplinares.

42Ademais, considerando os casos Leone e Mathevet, seus olhares – “externos” – são otimistas. Ainda enxergam na ciência geográfica credenciais que lhe podem conferir posição mais dianteira em atuais urgentes tarefas; tais como a de coordenar as esferas social e biofísica, a fim de prestar serviço à compreensão das mudanças nos sistemas socioecológicos. Cooperando, assim, ao pensamento complexo e à prática eficiente.

43Em Montpellier pudemos verificar existirem protagonistas nesse estilo mais desenvolto de ciência.

44Agradecimentos

45Somos gratos pelo financiamento deste séjour scientifique, proporcionado pelo “JEAI-GITES” (Jeunes Équipes Associées à l’IRD – Gestion, Indicateur et Territoire: Environnement et Santé au Brésil); bem como pela intermediação no contato com instituições em Montpellier, proporcionada pelas pesquisadoras Anne-Elisabeth Laques (IRD/Maison de la Télédétection) e Helen Gurgel (GEA/UnB).