A ascensão chinesa e a nova rota da seda: mudanças globais, novas hegemoniasi 1 A iniciativa “um cinturão, uma rota” (Obor - sigla em inglês) será designada neste trabalho por Nova Rota da Seda, cujo nome oficial é Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século XXI.The Chinese rise and the New Silk Route: global changes, new hegemoniesJulice Salvagni Magda Georgia da Silva Marília Veríssimo Veronese Róber Iturriet Avila Sobre os autores Show
ResumoEste artigo aborda temas relativos à nova rota da seda, a iniciativa chinesa que gera significativos impactos geopolíticos e econômicos globais. Faz parte desse quadro de projeção chinesa o seu ativismo financeiro, notadamente através do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura e do Fundo da Nova Rota da Seda. Destaca-se o impulso para dinamizar a economia e o comércio com outros países por meio de melhorias logísticas, visando o aumento de sua segurança energética e condições favoráveis para o escoamento de sua produção industrial. Sugere-se que o sucesso da China passa a ser do Presidente Xi Jinping e da condução assertiva de suas decisões para a concretização da nova rota da seda, tendo a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) e a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean+3) como importantes fóruns multilaterais para a tomada de decisões. Esse megaprojeto de investimento em infraestrutura envolvendo mais de 65 países tem o potencial de desafiar a supremacia ocidental representada pela hegemonia estadunidense, neste século XXI. Palavras-chave: AbstractThis article addresses topics related to the new silk road, the Chinese initiative that generates significant geopolitical and economic impacts over the globe. Part of this Chinese projection framework is its financial activism, notably through the Asian Infrastructure Investment Bank and the New Silk Road Fund. The drive to boost the economy and trade with other countries through logistical improvements is highlighted. aiming to increase the country’s energy security and to promote favorable conditions for the flow of its industrial production. It is suggested that China's success has to its President Xi Jinping and the assertive conduct of his decisions to implement the new silk road, with Shanghai Cooperation Organization (OCX) and Association of Southeast Asian Nations (Asean+3) as important multilateral forums for decision making. This infrastructure investment megaproject involving more than 65 countries, has the potential to challenge the Western supremacy represented by the US hegemony, in this 21st century. Keywords: IntroduçãoA existência da civilização chinesa com seus mais de cinco mil anos desafia o tempo: encerrou a dinastia Qing para se tornar República sem nunca ter deixado de ser Império (Jinping, 2014JINPING, Xi. A governança da China. Pequim: Editora de Línguas Estrangeiras, 2014.). O Império do Meio ( É indiscutível a importância da China nas últimas décadas da economia globalizada e seu impacto nas economias de múltiplas nações, até porque ela se tornou grande importadora de recursos minerais e energéticos, indispensáveis para o abastecimento de seu extenso e impressionante parque industrial. Segundo Helton Ouriques:
Muitos livros e artigos têm sido escritos na tarefa de pesquisar e analisar todos os aspectos - que incluem muitas contradições, por certo - dessa ascensão chinesa no mundo. Não resta dúvida: hoje é fundamental desvendarmos o que se passa naquele país asiático, para entendermos o que está ocorrendo no mundo em termos de processos socioeconômicos e geopolíticos globais (Oliven, 2011OLIVEN, Ruben George. Prefácio. In: PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Made in China: (in)formalidade, pirataria e redes sociais na rota China-Paraguai-Brasil. São Paulo: Hucitec, 2011.). Há controvérsias na literatura, questões em debate, como por exemplo a entrada da China como “parceira” comercial no continente africano. Que espécie de “parceria” é esta? Segundo Ching Kwan Lee (2017LEE, Ching Kwan. The specter of global China: Politics, labor, and foreign investment in Africa. Chicago, IL: University of Chicago Press, 2017.), a China mira agressivamente as matérias-primas de países africanos, estabelecendo uma presença poderosa no crescente mercado do continente. Entre os principais investidores estrangeiros na África, a China tem despertado do medo à esperança. Para muitos, o espectro de uma disputa neocolonial chinesa é real, enquanto para outros a China é a melhor oportunidade de renovação econômica da África. Contudo, não se tem aqui a pretensão de uma análise crítica desses aspectos do debate acadêmico. Os objetivos deste artigo são mais modestos. Focalizam-se os esforços na compreensão da iniciativa chinesa “Um cinturão, uma rota”1 1 A iniciativa “um cinturão, uma rota” (Obor - sigla em inglês) será designada neste trabalho por Nova Rota da Seda, cujo nome oficial é Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século XXI. e seu potencial para dinamizar a economia de mais de 65 países. Tal tema, em específico, é de grande relevância no cenário geopolítico contemporâneo, pois suas ações de integração regional através de investimentos em infraestrutura e da criação de corredores econômicos em nações da Eurásia e África trazem a possibilidade de potencializar a conectividade entre os participantes, transformando-os em eixos geoestratégicos através da Nova Rota da Seda, apesar dos riscos e das desigualdades presentes no processo. Ao considerar as mudanças que desafiam o Ocidente nas primeiras décadas deste século e que colocam frente a frente a República Popular da China e os Estados Unidos da América, no que se refere à globalização econômica, torna-se fundamental produzir análises dos reordenamentos geopolíticos mundiais em seus múltiplos aspectos. No contexto contemporâneo em que o país asiático se destaca como uma das lideranças do sistema econômico mundial, questiona-se o papel da Nova Rota da Seda para a expansão do poder chinês no atual cenário. O objetivo foi, portanto, analisar esse fenômeno através de revisão da literatura que pudesse apontar pistas empírico-teóricas sobre os fatores que têm conduzido à consolidação do poder da China no cenário geopolítico. Fazemos uma inflexão também no aspecto de aquilatar o quanto a hegemonia estadunidense poderia estar sendo ameaçada pelo avanço da China como potência global. Em consonância, destaca-se a superação da China na consolidação de seu ativismo econômico-financeiro e da afirmação de sua liderança na Eurásia como consequência da agenda positiva em prol do desenvolvimento, notadamente através da exportação de investimentos em infraestrutura para os países que fazem parte da Nova Rota da Seda. Pretende-se ainda ilustrar o intenso protagonismo chinês personalizado através de seu presidente Xi Jinping e sua vocação multilateralista, exteriorizada sobremaneira através de fóruns como a Organização para Cooperação de Xangai (OCX), a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) e em acordos com a Rússia. Em função da atualidade e complexidade do assunto-alvo desta pesquisa, optou-se pela busca em bases de dados on-line de trabalhos científicos, numa pesquisa realizada em 2018 e início de 2019. Foram selecionados textos que trabalhavam o papel da Nova Rota da Seda como instrumento da expansão de poder da China no cenário geopolítico, nessas primeiras décadas do
século XXI. Para isso, foi realizada a revisão integrativa, através de fontes abertas de publicações especializadas, a fim de reunir um quadro temático geral, em vez de consultar apenas alguns artigos que não contribuiriam para formar um espectro de argumentação mais consistente (Sampaio & Mancini, 2007SAMPAIO, R. F.; MANCINI, M. C. Estudos de revisão sistemática: um guia para síntese criteriosa da evidência científica. Revista Brasileira de Fisioterapia,
v. 11, n. 1, p. 83-89, Jan.-Fev. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/rbfis/v11n1/12.pdf>. Acesso em: 02 Nov. 2018. Por fim, os dados foram submetidos a uma análise de conteúdo que, segundo Martin Bauer e George Gaskell (2002BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.), é o método que permite reconstruir indicadores e cosmovisões, valores, atitudes, opiniões, preconceitos, estereótipos e compará-los. A codificação e posterior classificação dos dados são tarefas de construção entre a teoria e os materiais coletados, obtendo-se um conjunto de procedimentos documentados. Os documentos, depois de categorizados, oportunizaram a análise do tecido geopolítico que está sendo formado a partir da consolidação da Nova Rota da Seda chinesa. A hegemonia se configura como a “capacidade de um Estado exercer funções de liderança e governo sobre um sistema de nações soberanas” (Arrighi, 1996______. O longo século XX. Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. São Paulo: Editora Unesp, 1996.: 27). Nestes termos, é um poder que se explicita pela liderança tanto em termos econômicos como culturais, seja ela retratada pela capacidade coercitiva (militar) ou pelo consentimento. No caso da coerção, trata-se de “dominação”, apenas. Já o hegemon lidera o sistema de Estados procurando ser o “representante” do interesse geral. Immanuel Wallerstein (2000WALLERSTEIN, Immanuel. The essential Wallerstein. New York: New York Press, 2000.: 255) entende que hegemonia ocorre quando há um desequilíbrio de forças de tal forma que uma grande potência pode impor seus interesses em nível econômico, político, militar e cultural. Este poder advém da eficiência das empresas na produção agroindustrial, no comércio e no setor financeiro. Desta maneira, o autor pontua que a hegemonia se dá quando há dominância simultânea nas três esferas, referendando sua eficiência. Sob esta situação, as demais nações ficam submissas do ponto de vista político e ideológico, sendo que a imposição ideológica se manifesta, geralmente, pela defesa do liberalismo tanto no comércio como no fluxo de capitais. Um contexto liberal permite ao país hegemônico a ampliação de seus mercados, de forma que suas firmas, que já obtiveram ganhos de escala advindos de sua acumulação de capital e tecnologia pregressas, possam exportar para os demais países ou até mesmo instalar filiais neles, remetendo seus lucros para a matriz. Assim sendo, há oposição às barreiras alfandegárias e às políticas que restringem o livre-comércio. No que tange à política, o país hegemônico costuma interferir nos processos internos dos outros Estados. Tal estratégia ocorre quando as circunstâncias desses países colidem com o poder, ou seja, a intervenção visa assegurar seus interesses e suas vantagens; há, ainda, a pujança militar. Wallerstein (2000WALLERSTEIN, Immanuel. The essential Wallerstein. New York: New York Press, 2000.) expõe que antes de serem efetivamente hegemonias, há relutância por parte dos países em desenvolver suas forças militares. Entretanto, à medida que se observa a possibilidade de ocorrer enfraquecimento de forças impositivas no campo político e ideológico, torna-se indeclinável obter poder militar, para enfrentar algum eventual rival. Situação essa que também objetiva intimidar os demais Estados e resulta na estabilidade de sua influência hegemônica. Dado que o período efetivamente hegemônico se dá quando há dominância produtiva nos três setores citados anteriormente, a perda desse poder começa, portanto, quando o setor agroindustrial deixa de ter a mais elevada eficiência produtiva. Antonio Gramsci (2001______. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.; 2004) pontua que a sociedade é um todo orgânico que se explica pela base econômica, mas não é reduzido a este fator. As instituições da sociedade estão interconectadas com a subordinação cultural. Ou seja, sob esta visão, conquistar a hegemonia engloba a noção de representatividade cultural de forma que um grupo se apresenta como aquele que supostamente atende aos interesses e valores de todos, de tal sorte que há consentimento na liderança exercida, envolvendo a todos no mesmo compromisso. Assim, a infraestrutura da vida material apresenta uma simbiose com a superestrutura ideológica, política, cultural e moral (Avila & Salvagni, 2018AVILA, Róber Iturriet; SALVAGNI, Julice. Hegemonia, crise econômica e política: a dinâmica dos ciclos do capitalismo. Gestão e Desenvolvimento em Revista, v. 14, p. 29-50, 2018.). Sob o aspecto da realidade concreta, reveses têm sido enfrentados por Washington neste novo século. Desde o ataque às Torres Gêmeas e ao Pentágono, em 2001, e causas belli para a Guerra no Iraque, em 2003, inaugurando o posteriormente o fracassado Projeto para o Novo Século Norte Americano (Arrighi, 2008ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008.), assim como a crise financeira que abalou o globo em 2007-2008, ocasionando o que se tem chamado de Novo Normal da economia2 2 Segundo André Luís Scherer (2015), o novo normal reflete a tese sobre os efeitos do pós-crise 2007-2008, os quais produziram baixo crescimento e lenta recuperação dos países desenvolvidos e o maior crescimento dos países em desenvolvimento liderados pela China. Disponível em: <http://www.ipardes.gov.br/ojs/index.php/revista paranaense/article/view/780>, acesso em: 03 Ago. 2018. e, por fim, a eleição do midiático presidente Donald Trump, em 2016. Todos esses pontos de inflexão na trajetória de poder norte-americano têm contribuído para algum declínio de sua liderança no mundo. Conforme havia sugerido Henry Kissinger (2012KISSINGER, Henry. Diplomacia. São Paulo: Saraiva, 2012.: 759), a América do Norte já não estava mais em posição para liderar unilateralmente a agenda global como no início da Guerra Fria, e seu poder para moldar o mundo decrescera. Em um dos interesses manifestados do governo americano pós-2017, lado a lado com suas ações de política doméstica e externa, constatou-se que a liderança executiva americana virou as costas ao potencial advindo de intercâmbios culturais com outros países, ao instituir a política de tolerância zero contra imigrantes da América Latina, assim como às outras nações que compõem o G-7. José Eustáquio Diniz Alves afirmou que as reuniões multilaterais foram marcadas pelo isolacionismo dos Estados Unidos, na era Trump. Este foi de encontro à tradicional posição estadunidense de integração comercial e liderança nas decisões globais, parecendo querer romper com alianças ocidentais consolidadas desde o pós-Guerra. Na reunião do G-7, ocorrida em 8 e 9 de junho de 2018, no Canadá, os outros seis membros do grupo - França, Reino Unido, Alemanha, Japão, Itália e Canadá - manifestaram insatisfação com a saída dos Estados Unidos da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, do Acordo de Paris e do Acordo Nuclear com o Irã, bem como as críticas de Washington à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e as medidas de enfraquecimento do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta). O ex-presidente americano não assinou o comunicado conjunto da cúpula, deixou o encontro mais cedo fazendo críticas ao primeiro-ministro canadense Justin Trudeau, para encontrar-se com o presidente Kim Jon-un, da Coreia do Norte, dias mais tarde. O processo de integração tanto financeira como comercial, contudo, tem sido o procedimento de desenvolvimento orquestrado pelas nações hegemônicas, e o recente governo Biden, cujo programa econômico difere radicalmente do antecessor, sinaliza que irá retomar essa estratégia, assim como a retomada da participação dos esforços da cúpula do clima (El País, 2021). Contudo, esclarecemos que vamos nos ater aos dados obtidos revisão bibliográfica empreendida, que não cobrem o período do corrente ano nem da pandemia do Covid-19. Ha-Joon Chang (2004CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2004.) aponta que os países na fronteira tecnológica que obtêm ganhos de competitividade na arena internacional são aqueles que estimulam o processo de integração comercial, já que tendem a ampliar seus mercados. À medida em que esses perdem competitividade, tendem a intensificar práticas protecionistas, ou retomá-las. A Grã-Bretanha foi o país que por mais tempo praticou protecionismo industrial (1721-1846). Quando ganhou competitividade, passou a firmar acordos de livre-comércio com outras nações. Já no período pós Primeira Guerra Mundial, quando o país perdia espaço comercial para os Estados Unidos, a Grã-Bretanha voltou a elevar tarifas alfandegárias. O mesmo aconteceu com os Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, quando o país se afirmou como novo hegemon. Mais recentemente, com o governo Trump, ao mesmo tempo em que a China ganhava mercados e competitividade internacional, a política externa dos Estados Unidos tornou-se de protecionismo e isolacionismo. De qualquer modo, também são apontados riscos em relação ao crescimento das vendas de comodities para a China, por parte de países latino-americanos, por exemplo. Para Ouriques (2015OURIQUES, Helton Ricardo. As relações econômicas entre América Latina e China: uma perspectiva sistêmica. Perspectivas, v. 45, p. 9-40, Jan.-Jun. 2015.), os riscos são de reprimarização da economia, já que os países abandonam os seus próprios parques industriais para focarem na produção de produtos primários, demandados para que o processo exponencial de crescimento industrial chinês se concretize. No caso do Cone Sul tal situação poderia configurar um oligopsônio, ou seja, uma situação comercial de apenas um comprador central para vários países fornecedores, o que em um continente tão desigual pode aumentar as desigualdades nacionais e regionais no contexto do mercado mais amplo (Ouriques, 2015). O Grupo Eurásia, no começo de 2018, publicou os seus Top Risks para o ano que se iniciava. A assessoria internacional para assuntos de risco em geopolítica considerou a redefinição de estratégia externa de Pequim versus a renúncia ao multilateralismo por parte de Washington como o grande risco mundial do ano, sinalizando que a China havia mudado sua estratégia oficial. O presidente Xi Jinping, à época, já havia consolidado poder interno suficiente para redefinir sua atuação externa aproveitando o momento oportuno em que Trump renunciara ao perfil multilateralista, levando incerteza sobre o protagonismo dos Estados Unidos na Ásia e criando um vácuo de poder que pôde ser preenchido pela China. Ao antecipar as previsões do Grupo Eurásia, Thomas Friedman havia publicado no jornal The New York Times, em março de 2017, artigo apontando que as ações de Donald Trump eram um esforço para fazer a “China grande de novo”. Ele afirmou que ao saírem do Acordo Transpacífico (TTP - sigla em inglês) - negociação para
livre comércio entre onze países do Pacífico (40% do PIB mundial) baseado, em grande medida, nos interesses norte-americanos - os Estados Unidos desistiriam de negociar com a China como o líder de um bloco de doze países e com a possibilidade de comercializar segundo seus interesses e valores (Friedmann, 2017FRIEDMANN, Thomas L. Trump is a chinese agente. The New York Times, “Opinion”, 29 Mar. 2017. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/03/29/opinion/trump-is-a-chinese-agent.html>.
Acesso em: 19 Ago. 2018. Em vez disso, Washington incita Pequim a uma guerra comercial, retratada em um artigo de William Engdahl não apenas como uma política de equilíbrio de superávits comerciais, mas antes como sendo uma postura norte-americana de “contenção estratégica” ao modelo chinês de desenvolvimento. Long Guoqiang, vice-presidente do Centro de Pesquisa do Desenvolvimento do Conselho de Estado da China, apontou para essa tendência, afirma o autor, no mesmo artigo (Engdahl, 2018). E toda essa cena ofensiva americana bem poderia lembrar um chicken game 3 3 Disponível em: <https://cs.stanford.edu/people/eroberts/courses/soco/projects/1998-99/game-theory/chicken.html>. Acesso em: 23 Ago. 2018. , cuja obstinação dos jogadores poderia gerar cenários de perda para todos os envolvidos. Portanto, o século XXI iniciou testemunhando a “transferência do epicentro da economia política global da América do Norte para a Ásia Oriental” (Arrighi, 2008ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008.: 13), ocasionando mudanças no peso da balança de poder global e, com isto, um consequente reordenamento da ordem mundial. Segundo Paulo Visentini (1998: 8), o sistema internacional marcado, a partir anos de 1990, pela “globalização”, formação de blocos regionais e pelo reordenamento político internacional sinalizou uma fase de transição que ensejou a emergência da Ásia Oriental e, principalmente, da China como polo desafiante à hegemonia anglo-saxônica. Enquanto nos Estados Unidos, recentemente, foram tomadas medidas de protecionismo, de aplicação de leis de cunho xenofóbico que fortaleceram o hard power (ou coercitivo) dos Estados Unidos, a composição de um soft power 4 4 Segundo tese do cientista político norte-americano Joseph Nye Jr. (2004) soft power é “o poder brando” e está em contraposição “ao poder duro”. O primeiro é manifestado pelo poder de atratividade exercido através da cultura, dos valores e das políticas externas legítimas de um país; o outro é obtido através de coerção financeira ou militar. praticado pela China, segundo a concepção de Joseph Nye Jr. (2004: 5-6) - aquele que causa atração, admiração e aspiração ao seu nível de prosperidade -, tem sido a política observável na atuação externa chinesa. Tal inflexão estaria modificando a visão sobre a China no panorama global. Em 1999, a Folha da História publicou discussões referentes ao cinquentenário da Revolução Chinesa. Naquela edição, o professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luiz Dario Teixeira Ribeiro (1999RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira. 50 anos e Revolução Chinesa / Revolução Chinesa: antecedentes históricos. Folha da História, Ano IV, n. 31, Nov. 1999.), retratou a representação que se tinha sobre a China até meados da década de 1960: de um país atrasado composto pelos “amarelos” e que tinha sido obrigado a abrir suas portas à modernidade da Civilização Ocidental, imagem esta que muitos ainda guardavam em suas memórias até aqueles dias. Ao percorrer o caminho da re-emergência chinesa desde o século da humilhação causada pelos tratados desiguais5 5 Segundo Carlos Pinent (2015: 85): “os chineses denominam o período que vai aproximadamente de 1845 a 1945 de ‘século da humilhação’. Alguns contam de 1842 a 1943, início e fim dos ‘tratados desiguais’, imposições das potências colonizadoras”. A esse respeito, esclarece Luiz Dario Teixeira Ribeiro (1999: 6): “Com as Guerras do Ópio os vencedores, que eram os europeus, exigiam a abertura da economia chinesa.” , passando pelo fracasso do Grande Passo Adiante de Mao Tse-tung, a China chegou à sua abertura econômica, em 1978, e atualmente tem sua imagem consolidada de grande potência econômica, política, militar, detentora de conhecimentos científicos e tecnológicos e com crescimento acima da média internacional6 6 Segundo Luiz Fernando de Paula e Elias Jabbour (2016), entre 1980 e 2015, a média de crescimento do PIB real chinês foi de 9,5% a.a., ou seja, por mais de quatro décadas a China logrou um crescimento acima da média internacional. Disponível em <http://www.luizfernandodepaula.com.br/ups/a-china-e-seu-catching-up.pdf>. Acesso em: 18 Ago. 2018. . Isso foi atestado pelas palavras do administrador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em 2017, Achim Steiner, em declarações feitas ao site de notícias chinês Xinhua: ele classificou o avanço da China como um acontecimento sem precedentes na história. A Nova Rota da Seda, ou oficialmente, Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do século XXI, relança a ideia da antiga Rota da Seda, retratada pelo historiador Joshua Mark (2018MARK, Joshua J. Silk Road, 2018. Disponível em: <www.ancient.eu/Silk_Road/Silk
Road>. Acesso em 19 Ago. 2018. Simbolicamente renovada através da iniciativa chinesa, o megaprojeto teve a proposta de promover, com seus parceiros, a prática dos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica lançados em 1955, na Conferência de Bandung, pelo então primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, que são: i. respeito mútuo à soberania e à
integridade territorial, ii. não agressão mútua, iii. não interferência nos assuntos internos de cada país, iv. igualdade e benefício recíprocos e v. coexistência pacífica (Pecequilo & Forner, 2017PECEQUILO, Cristina Soreanu; FORNER, Clarissa Nascimento. O reposicionamento estratégico sino-estadunidense: o Mar do Sul da China (2009/2017). Revista Brasileira de Estudos de Defesa, v. 4, n. 2, 2017. Disponível em: <https://rbed.abedef.org/rbed/article/view/74992>.
Acesso em: 06 Ago. 2018. O almirante norte-americano Alfred Mahan, em 1900, defendia que mares e oceanos eram espaços “sociais e políticos” e que uma marinha mercante impunha a necessidade de ser resguardada por uma marinha de guerra, considerando que quanto maior fosse afluxo, pelos mares, de comércio de um país, tanto mais lhe aumentariam as chances de se chocar com interesses de nações hostis em pontos distantes do globo. Desta forma, Mahan afirmava que a instalação e a manutenção de uma rede de “pontos de apoio” ao longo de regiões costeiras e estratégicas, além de um comércio marítimo e de um poder naval, resultariam no poder marítimo de um país. Acredita-se que a China, através da Rota, busque promover condições para criar tais pontos de apoio e vias livres de navegação que desviem seu tráfego marítimo de estreitos de estrangulamento e do controle militar, com vistas a expandir seu sistema de rotas comerciais (Carmona, 2017CARMONA, Ronaldo Gomes. Poder nacional e grande estratégia: uma análise geopolítica dos conceitos fundamentais do projeto brasileiro de potência. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017.; Thiery & Da Costa, 2016THIERY, Hérvé; DA COSTA, Wanderley Messias. Oitenta anos de geopolítica no Brasil: da geografia militar a um pensamento estratégico nacional. Revista Tamoios, v. 12, n. 2, 2016.; Vizentini, 1998VIZENTINI, Paulo Fagundes. História do século XX. Porto Alegre: Novo Século, 1998.). O britânico Halford John Mackinder (1907), diferentemente de Mahan, enfatizava sua teoria no poder terrestre. O heartland, que correspondia à parte central da Eurásia, segundo sua tese, demonstrava grande capacidade de mobilidade em todas as direções e cujas áreas marginais permitiriam saída para o mar e fácil acesso à navegação e às ferrovias transcontinentais. Desta forma, o país que controlasse o heartland poderia controlar a ilha mundial e, com isso, dominar o mundo. Pequim, com seu Cinturão, pretendeu interligar o litoral chinês ao litoral europeu com passagem pelo “heartland mackinderiano” apontando para a intenção de ser liderança ativa na Eurásia (Carmona, 2017CARMONA, Ronaldo Gomes. Poder nacional e grande estratégia: uma análise geopolítica dos conceitos fundamentais do projeto brasileiro de potência. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017.; Thiery & Da Costa, 2016THIERY, Hérvé; DA COSTA, Wanderley Messias. Oitenta anos de geopolítica no Brasil: da geografia militar a um pensamento estratégico nacional. Revista Tamoios, v. 12, n. 2, 2016.; Vizentini, 1998VIZENTINI, Paulo Fagundes. História do século XX. Porto Alegre: Novo Século, 1998.). A Rota da Seda do século XXI, ao trazer o espírito da mítica Rota da Seda para contemporaneidade, intende
promover, entre os Estados parceiros, os cinco fatores de conectividade, que são: comunicação política, conectividade de infraestrutura, comércio desimpedido, circulação monetária e entendimento entre pessoas (Pautasso & Ungaretti, 2017PAUTASSO, Diego; UNGARETTI, Carlos Renato. A Nova Rota da Seda e a recriação do sistema sinocêntrico. Estudos Internacionais: Revista de Relações Internacionais da PUC Minas, v. 4, n. 3, p. 25-44, 2017. Disponível em: <http://200.229.32.55/index.php/estudos
internacionais/article/view/13874>. Acesso em: 03 Ago. 2018.
A agenda positiva da China para integração e desenvolvimento, entretanto, não dá mostras de ficar restrita somente à Eurásia e África. No X Encontro de Cúpula do Brics, ocorrida na África do Sul nos dias 25 e 27 de julho de 2018, o presidente chinês Xi Jinping insistiu que Brasil e China discutissem sobre “a sinergia da Iniciativa Cinturão e Rota com as estratégias de desenvolvimento do Brasil” (tradução própria)8 8 Disponível em: <https://eng.yidaiyilu.gov.cn>. Acesso em: 27 Jul. 2018. . Isso aponta para que o mundo esteja mais atento à assertividade das iniciativas chinesas em âmbito global. No caminho de um maior aproveitamento das oportunidades, deve-se conhecer, com mais profundidade, a história milenar do Império do Meio. “A China e o mundo precisam se conhecer melhor”, exortava o presidente Xi Jinping (2014: 5) naquele momento. É essa uma das propostas do Presidente Xi Jinping expressa em seu livro A governança da China, publicado em 2014JINPING, Xi. A governança da China. Pequim: Editora de Línguas Estrangeiras, 2014., que busca expressar o direcionamento político chinês contemporâneo, desta vez sob a ótica de um cidadão chinês, o tomador de decisões mais elevado do país, que “tem dirigido todo o Partido e o povo [...] para enfrentar as dificuldades e os desafios e lutar incansavelmente para concretizar o sonho chinês da grande revitalização da nação chinesa” (Xi, 2014, “Nota do editor”). Apesar de contendas a serem solucionadas em relação a Taiwan e à sua expansão no Mar do Sul da China, como também lembrava Theotonio dos Santos9 9 Theotonio dos Santos fez a apresentação do livro Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI, de Giovanni Arrighi (2008: 11). , que a China tem questões pendentes com o Japão, a Índia e a Rússia, ao implementar tal projeto. Pequim tenta superar desagravos e atrair aliados quando sinaliza investir na reestruturação dos países signatários do projeto. Ao mesmo tempo, avança em sua estratégia de poder na Eurásia que lhe poderá trazer maior securitização para as rotas de exportação de seus produtos e de importação do petróleo e gás natural que sustentam seu parque industrial. As múltiplas dimensões da Nova Rota da SedaO antigo caminho comercial da Rota da Seda, que ligava o Oriente ao Ocidente em tempos remotos, fazia circular pessoas, especiarias, cultura, filosofia, arte e religião e foi referido em
trabalhos científicos das mais diversas áreas - história, educação, direito, saúde, engenharia, turismo, patrimônio cultural, gastronomia, teatro, biblioteconomia, comércio, globalização e tecnologia da informação. Portanto, a referência que esses textos fizeram à intensa circulação das caravanas entre os séculos II a.C. e XV d.C. revisitam o conceito da integração entre povos e foi retomado nos textos sobre a sua nova versão, pois se entende que grande parte da humanidade ainda carrega o mítico
anseio de transpor fronteiras e de se universalizar. Sandro Mendonça (2016MENDONÇA, Sandro. Rota da Seda, velha (s) e nova (s). Janus - 2015-2016 - Integração Regional e Multilateralismo, p. 124-125, 2016. Disponível em: <http://repositorio.ual.pt/handle/11144/2964>. Acesso em: 03 Ago. 2018. A ideia de uma nova alternativa de integração regional foi amplamente comunicada, a partir de 2013, pelo Presidente Xi Jinping. Todavia, de acordo com Marcos Costa Lima e equipe (2016LIMA, Marcos Costa et al. Nova rota da seda e a ascensão pacífica chinesa. Século XXI, v. 7, n. 1, 2016. Disponível em: <http://seculoxxi.espm.br/index.php/xxi/article/view/136>. Acesso em: 05 Ago.
2018. Nos diversos artigos e trabalhos acadêmicos consultados, há temas mais recorrentes e que nos levaram a construir um quadro no qual Pequim parece consolidar sua legitimidade interna, seu ativismo financeiro e sua liderança política cada vez mais ativa e altiva na ordem mundial, conforme Quadro 1. Quadro 1 Os textos analisados procuram também
demonstrar a magnitude do projeto, que tem uma face voltada para a internacionalização da China, através de apoio financeiro aos países signatários, e outra dirigida para a integração doméstica, tentando suavizar desequilíbrios entre as regiões costeiras e as do interior, ao mesmo tempo em que quer combater “os três males: o separatismo, o terrorismo e o extremismo” (Brites & Jaeger, 2015BRITES, Pedro; JAEGER, Bruna Coelho. A criação do Banco Asiático de
Investimento em Infraestrutura e os desafios à governança financeira global. Conjuntura Austral, v. 7, n. 33-34, Dez. 2015. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/ConjunturaAustral/article/view/59557>. Acesso em: 03 Ago. 2018. Outro elemento que contribui para descrever a República Popular da China contemporânea é também sua notável projeção
econômica, ocorrida principalmente a partir da segunda década do novo século. Segundo Diego Pautasso (2015PAUTASSO, Diego. A China na nova arquitetura geoeconômica global e o caso do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. Meridiano 47 - Journal of Global Studies, v. 16, n.149, p. 12-19, 2015. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/15017>. Acesso em: 03 Ago.
2018. Na esteira da internacionalização de sua economia, além das iniciativas antes referidas, Pequim também aposta na projeção mundial de sua moeda, o Renminbi (Wenwen (2017WENWEN, Lyu. A utilização da moeda chinesa como fator de poder: o caso do Renminbi. Dissertação
(Mestrado) - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2017. Disponível em: <https://www.repository.utl.pt/handle/10400.5/14075>. Acesso em: 04 set. 2018. A China, todavia, está atenta às pressões vindas de fora. Após a crise financeira de 2007-2008 - que abalou mercados, desafiou a estabilidade do sistema econômico internacional e a validade da globalização -, Pequim apostou na estratégia de soft power através de projetos de
construção e revitalização de estradas, ferrovias, portos, oleodutos e gasodutos em outros países. Nesta coleta de dados, 42 trabalhos identificam a exportação de investimentos chineses no exterior como atuação relevante da China e muitos a pontuam, por outro lado, como alternativa para o país alavancar sua economia quando os mercados mundiais passaram a dar mostras de retração de consumo. Fernanda Ilhéu (2017ILHÉU, Fernanda. A Nova Rota da Seda marítima do
século XXI: os países de língua portuguesa na cadeia de valor global da China. Revista Oriente Ocidente, n. 34, II Série, 2017. Disponível em: <http://www.anrs.pt/documentation/OrienteOcidenteFernandaIlh%C3%A9u. pdf>. Acesso em: 6 Ago. 2018. É importante salientar o que
afirmaram Wang (2015) e Griffith-Jones (2014), citados por Baumann (2016BAUMANN, Renato. Os novos bancos de desenvolvimento: independência conflitiva ou parcerias estratégicas? Radar, v. 43, Fev. 2016. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/ handle/11058/6052>. Acesso em: 06 Ago. 2018. Em complementação a esse projeto de desenvolvimento, existem diversas formas de securitização13 13 Paulo Duarte (2017: 45), doutor pela Université Catholique de Louvain (Bélgica) e investigador na Cheng-chi University,
Taipé - citando B. Buzan, O. Waever, O. E J. Wilde, (1998) - pontua que “securitizar” é um termo utilizado pela Escola de Copenhague que significa elevar determinado assunto da esfera da política normal ao da alta política (high politics). Isto acontece quando uma matéria considerada como ameaça e que é sensível aos interesses de um país (questões de segurança energética, alimentar, disputas por soberania territorial etc., consideradas do domínio da alta política) determina que se recorra a
políticas dotadas de contornos de exceção (que podem ou não envolver o uso da força militar) ou de caráter temporário na direção de sua dessecuritização, devolvendo a matéria à esfera da política normal. Disponível em: <http://www.anrs.pt/documentation/ OrienteOcidentePauloDuarte.pdf>. Acesso em: 06 Ago. 2018. empreendidas pelo país - energética, financeira, territorial, logística, comercial, militar e alimentar, bem como das linhas de comunicação marítima através da
formação de um “colar de pérolas”14 14 Segundo Daniel day Vázquez e Marcos Vinícius Fernandes (2016: 128), o termo “colar de pérolas” foi cunhado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos em documento intitulado “Energy futures in Asia”, no qual o tenente-coronel Pehrson descrevia o “colar de pérolas” como “a manifestação da crescente influência geopolítica chinesa através de seus esforços para incrementar o acesso a portos e aeroportos,
desenvolver relações diplomáticas especiais e modernizar as forças militares que se estendem desde o Mar do Sul, da China, através do estreito da Malaca e do Oceano Indico, em direção ao Golfo Pérsico”. Disponível em: <http://revistageopolitica.com.br/index.php/ revistageopolitica/article/viewFile/92/91>. Acesso em: 15 Out. 2018. . Isso converge para a ideia de um comportamento Chronos: uma civilização que se tornou um Estado e que acumula larga experiência em
lidar com adversidades externas (Romana, 2016ROMANA, Heitor Barras. Da cultura estratégica: uma abordagem sistêmica e interdisciplinar. R. Esc. Guerra Naval, v. 22, n. 1, p. 13-32, Jan.-Abr. 2016. Disponível em: <www.jmksistemas.com.br/ojs/index.php/revistadaegn/article/download/211/173>. Acesso em: 15 Out.
2018. Em relação ao multilateralismo - uma das marcas da narrativa da República Popular da China -, há dois fóruns que apresentam importância para a condução das questões sensíveis à Ásia e, portanto, passam a servir de apoio à concretização da Nova Rota da Seda: a OCX e a Asean. A OCX foi fundada em 15 de junho de 2001, na cidade chinesa de Xangai, por China, Rússia, Cazaquistão, Tadjiquistão e Uzbequistão que, desde então, têm se empenhado pelo fortalecimento dos países membros e “pela cooperação nas áreas de política, economia, ciência e tecnologia, cultura, educação, energia, transporte e estabilidade na região e a promoção de uma nova ordem internacional e econômica mais democrática, justa e racional” (Jinping, 2014JINPING, Xi. A governança da China. Pequim: Editora de Línguas Estrangeiras, 2014.: 349-350). Erik Ribeiro (2015RIBEIRO, Erik Herejk. A expansão da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX): uma coalizão anti-hegemônica? I Seminário Internacional de Ciência Política: Estado, democracia e mudança no século XXI. 9 a 11 set.
2015. Porto Alegre. UFRGS. Disponível em: < https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/RIBEIRO-A-Expans%C3%A3o-da-Organiza%C3%A7%C3%A3o-para-a-Coopera%C3%A7%C3%A3o-de-Xangai-Uma-Coaliz%C3%A3o-Anti-hegem%C3%B4nica.pdf>. Acesso em: 22 Ago.
2018. O interesse dos pesquisadores consultados sobre a Asean é igualmente relevante. A Associação de Nações do Sudeste Asiático foi criada em 1967 pela Tailândia, Filipinas, Malásia, Singapura, Indonésia, Brunei, Vietnã, Miamar, Laos e Camboja e, em 1997, surge a Asean+3 com a integração de novos membros - China, Coreia do Sul e Japão. A Asean, assim como a OCX,
também trabalha com questões sensíveis para serem resolvidas. Uma delas, provavelmente a principal, refere-se aos litígios territoriais envolvendo a China e os países da zona ribeirinha ao Mar do Sul da China. O recife de Scarborough é disputado também pelas Filipinas; e as ilhas Paracel são disputadas pelo Vietnã; e as Spratly, além da China, são motivo de contendas entre o Vietnã, a Malásia, Brunei, Taiwan e Filipinas. É também nessa área que se localiza o Estreito de
Málaca17 17 O estreito de Málaca liga o Oceano índico ao Mar do Sul da China. Apesar de ser uma região com um dos mais densos tráfegos marítimos do mundo, é considerada problemática por sua baixa profundidade e sua extrema estreiteza, configurando um “ponto de estrangulamento” (chocke point). Adicionados a isso, a pirataria e os incêndios florestais em Sumatra (Indonésia), também frequentes, reduzem a visibilidade dos navios (Vázquez & Fernandes,
2016: 146). Disponível em: <http://revistageopolitica.com.br/index.php/ revistageopolitica/article/viewFile/92/91>. Acesso em: 07 Ago. 2018. e por onde transitam US$ 5 trilhões em comércio a cada ano, fazendo da região motivo de desavenças entre alguns países da Asean e Taiwan e, por consequência, um significativo ponto de tensão (Al Jazeera, 2016, tradução própria)18 18 Disponível em: <http://www.aljazeera.com/news/2016/09/south-china-sea-row-tops-asean-summit-agenda-
160908052213165.html>.Acesso em: 16 out. 2018. . Cristina Pecequilo e Clarissa Forner (2017PECEQUILO, Cristina Soreanu; FORNER, Clarissa Nascimento. O reposicionamento estratégico sino-estadunidense: o Mar do Sul da China (2009/2017). Revista Brasileira de Estudos de Defesa, v. 4, n. 2, 2017. Disponível em: <https://rbed.abedef.org/rbed/article/view/74992>. Acesso em: 06 Ago.
2018. Os tomadores de decisão da República Popular da China têm criado condições materiais para o crescimento doméstico e para a alavancagem de países da Eurásia e África que aderiram às suas iniciativas. A projeção do poder da China, que tem ocorrido de forma gradual, também é reforçada por um importante elemento: um governo obstinado em seu desenvolvimento e na realização do “sonho chinês” (zhongguo meng Nogueira & Hendler, 2016NOGUEIRA, Isabela; HENDLER, Bruno. O Sudeste Asiático entre Estados Unidos e China: “arquipélago de economias de mercado” ou palco da competição interestatal capitalista? Carta Internacional, v. 11, n. 3, p. 199-222, 2016.: 211-212). O
Presidente Xi Jinping aparece como o eloquente comunicador desse “sonho chinês”, e é bastante citado nos textos consultados no âmbito desta pesquisa. Presidente da China desde 2013, diferentemente dos seus antecessores, “Xi recebeu todos os cargos - incluindo as comissões militares do partido e do Estado - de uma só vez” (Silva, 2015SILVA, Athos Munhoz Moreira da. A ascensão da China e os seus Impactos para o Leste Asiático. Dissertação (Mestrado) - Faculdade
de Ciências Econômicas, Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/132973>. Acesso em: 23 Ago. 2018. Segundo o jornal espanhol Expansión, especializado em notícias de
cunho econômico, o governo chinês, até maio de 2017, já havia investido na Nova Rota da Seda US$ 1,62 bilhão, com planos de direcionar mais US$ 2,3 bilhões anualmente pelos dez anos subsequentes. À época, mais de 100 países e organizações internacionais já haviam apoiado o projeto e mais de 40 já tinham oficializado a cooperação através de acordos de cooperação19 19 Disponível em: <http://www.expansion.com/economia/2017/05/13/5917499d22601d85728b45bd.
html>. Acesso em: 18 Out. 2018. . Adverte, porém, Ricardo Lopes Kotz (2017KOTZ, Ricardo Lopes. A Nova Rota da Seda: a fundamentação geopolítica e as consequências estratégicas do projeto chinês. Brasil: Associação Brasileira de Estudos de Defesa, 2017. Disponível em: <http://www.erabedsul2017.abedef.org/resources/anais /8/1503106874_ARQUIVO_ArtigoERABEDSUL-RicardoKOTZ.pdf>. Acesso em: 06 Ago.
2018. Considerações finaisA China não parece querer recuar ante nenhum pretexto. Ao contrário: mostra-se cada vez mais disposta a realizar a “reforma do sistema de governança global” e “possui um roteiro claro” para isso, declarou Kevin Rudd (ex-primeiro-ministro da Austrália e presidente da Asian Society Policy Institute)20 20 , Kevin Rudd, “A ordem mundial está em transição, e a China tem roteiro claro”, Folha de S. Paulo, “Mundo”, 18 Jul. 2018. . Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/07/ordem-mundial-esta-em-transicao-e-china-tem-roteiro-claro.shtml>. Acesso em: 18 Jul. 2018. . Pretendeu-se, neste artigo, identificar o que a literatura apontava como principais questões e desafios diante do crescimento da China como ator global, quais os atributos de desenvolvimento expressados através da Nova Rota da Seda e de seu papel para a expansão de poder geopolítico da China. Identificamos que faz parte do quadro dessa projeção hegemônica o seu ativismo financeiro, notadamente através do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura e do Fundo da Nova Rota da Seda, que se propõem o financiamento de projetos de infraestrutura nos países signatários e o estímulo à sua conectividade, cujo sucesso poderá dar condições à internacionalização do Renminbi. Esse impulso de dinamizar sua economia e o seu comércio com outros países por meio de melhorias logísticas (marítimas e terrestres) vai ao encontro do anseio por securitização em vários setores e por condições mais favoráveis para o escoamento de sua produção industrial. Para além da proposta de uma agenda mais positiva para a Eurásia e África, que é legítima enquanto alternativa à globalização neoliberal, entende-se que a China passa a ser tributária ao carisma de seu presidente e da condução assertiva de suas decisões para a concretização da Nova Rota da Seda e, nessa direção, a OCX e a Asean+3 podem atuar como importantes fóruns multilaterais para a tomada de decisões consensuais entre os países membros, consolidando o protagonismo de Pequim e a integração regional. Testemunha-se um tempo de intensas transformações no tabuleiro global, que tem colocado recentemente frente a frente China e Estados Unidos, em um embate comercial com proporções ainda incalculáveis para a economia internacional e para as populações dos países envolvidos. Sugere-se que deveriam ser mais frequentes os debates sobre os efeitos da expansão econômica chinesa no mundo, cujas discussões são essenciais para a compreensão do teatro geopolítico deste século XXI. Tais debates acabam ficando mais restritos aos meios acadêmicos e aos órgãos governamentais, que concentram especialistas em diplomacia e profissionais que lidam com negócios internacionais. Neste sentido, é necessário refletir sobre as ações dos principais atores políticos mundiais e, especialmente com membros do Brics, avaliando a pertinência de sua integração em um futuro corredor comercial no âmbito de uma possível Nova Rota da Seda Global. Uma das limitações do estudo é abranger um período de revisão anterior à pandemia, e assumimos agora o desafio de realizar mais uma pesquisa bibliográfica a partir da extensa produção que se desenrolou nos anos de 2020 e 2021, com a pandemia de Covid-19, que iniciou na China, e o quadro de crise/emergência global a partir desse novo enquadramento. Um novo trabalho deve suceder a este, retomando e atualizando a análise, a partir da pandemia, do final do governo Trump e dos intensos acontecimentos do último período de um ano e meio. Este estudo, em seu foco central, revisitou a história da nação que logra ser uma das mais longevas do planeta e procurou ser a uma apreciação mais atenta ao anseio chinês por mudanças, que tem se traduzido, desde sua abertura em 1978, no sucesso de suas reformas e em um dinamismo sem precedentes que afeta todo o globo (Arrighi, 2008ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008.). Essa mudança bem poderia ser simbolizada pela Esfinge na porta cidade de Tebas a desafiar os entrantes: decifra-me ou te devoro. Na atualidade, sua voz ecoa nos cinco cantos do mundo e encara a comunidade internacional que, para alguns observadores, agora apresenta traços orientais. REFERÊNCIAS
Datas de Publicação
Histórico
Quais povos utilizaram a Rota da Seda?História da Rota da Seda
Não se sabe com precisão, mas acredita-se que a rota começou a ser usada inicialmente há mais de 10 mil anos pelos povos antigos do Saara. Eles foram muito importantes para o desenvolvimento de civilizações como o Egito Antigo, os povos Mesopotâmicos, China, Pérsia, Índia…
Como se desenvolveu a Rota da Seda?As Rotas da Seda eram uma série de rotas interconectadas através do sul da Ásia e eram usadas no comércio da seda entre o Oriente e a Europa. Os meios de transporte que rodeavam tais rotas eram as caravanas e embarcações oceânicas que faziam a ligação do Oriente e a Europa.
Em que dinastia da China e em qual época surgiu a Rota da Seda?A China foi uma das precursoras do comércio na rota, iniciando o transporte da luxuosa seda durante a Dinastia Han (207 AEC – 220 EC). Os chineses descobriram como fabricar o tecido a partir das fibras dos casulos dos bichos da seda, e mantiveram o segredo dessa produção muito bem guardado.
Quando foi criada a Rota da Seda?Não existe um consenso sobre a data exata em que a Rota da Seda teria sido criada. Alguns estudiosos apontam que o caminho foi criado há quase seis milênios, por volta do ano 3.600 a.C. Outras correntes, porém, indicam que a data original seria do século I a.C., isto é, quase 4.000 anos mais tarde.
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