Qual a importância dessas expressões para o conto quando foi dormir no meio da noite?

Sua origem, persistência e transmissão

1Os fenómenos que mais directamente nos tocam são os que mais tarde e dificilmente se observam. A ciência social é a última que veio a constituir-se como o desenvolvimento final da síntese objectiva realizada pelas ciências cosmológicas e biológicas tornadas positivas; a maior parte dos estudos necessários para o estabelecimento dessa ciência do fenómeno social, têm-se dividido em ciências concretas, como a antropologia, a etnologia, a filologia, a mitografia, a psicologia, a literatura comparada e, que explicando o presente pelas suas relações ininterruptas com o passado, nos revelam estados primitivos da consciência, e esse período emocional donde saiu o acordo afectivo das primeiras sociedades humanas.

2Uma vez achado este critério, muitos factos que passariam desapercebidos ou sem sentido, projectam uma luz imensa sobre as concepções mentais, sobre os costumes sociais do presente, logo que eles se aproximam de factos semelhantes que existiram ou ainda subsistem entre povos que nunca se conheceram, entre raças incompatíveis entre si, ou entre civilizações de diferente grau e carácter. Descobertas históricas importantes determinaram esta modificação do critério científico; a comparação dos caracteres das raças humanas pelos antropologistas, o confronto dos costumes dos povos selvagens pelos viajantes, a descoberta do sânscrito dando a base para o estabelecimento da filiação mútua das línguas indo-europeias, a leitura dos caracteres cuneiformes e hieroglíficos da Caldeia e do Egipto desvendando os livros sagrados dessas civilizações, as suas ideias morais e estéticas, a renovação dos estudos clássicos pela aproximação das literaturas dos dados arqueológicos, e por último o interesse pelos documentos da Idade Média da Europa na qual foi elaborada a civilização moderna, tudo isto convergiu para dar à inteligência um mais elevado ponto de vista pela relação de factos que isoladamente não apresentavam sentido algum e que eram como letra morta. Assim pelos usos populares, por costumes locais, por locuções repetidas automaticamente, por anexins, por parlendas infantis, por hábitos domésticos pôde Jacob Grimm reconstruir o sistema religioso da antiga raça germânica obliterado sob a cultura romana e pela assimilação católica. Com a intuição do génio criador, encetou Jacob Grimm a investigação dos contos populares nos vários estados da Alemanha, no começo do século xix, quando esta forma tradicional, desnaturada pelas divagações literárias, parecia condenada a perder-se na transmissão oral inconsciente. Jacob Grimm e seu irmão publicaram entre 1812 e 1814 a colecção do Kinder und Hausmärchen, revelando que estas narrativas espontâneas continham uma riqueza de fantasia que ultrapassava todo o poder da invenção artística, e mais ainda, que essas situações dramáticas, esses personagens fantásticos eram os últimos restos das concepções míticas dos povos áricos, que se foram transformando para se adaptarem à corrente da civilização moderna. «Uma vez que Grimm nos abriu os olhos, tornou-se impossível o desconhecer a identidade de certos heróis locais e de deuses antigos, a identidade das empresas atribuídas a uns e a outros respectivamente pela tradição e a mitologia. O problema consistia em saber donde provinha esta identidade.» (Max Müller, Nouvell. études de mythologie, p. 76.)

3A tese era fundamental; não sendo possível dar-lhe logo a evidência da demonstração, pelo menos o confronto com tradições similares de outros povos levava a crítica a considerar esse produtos, aparentemente caprichosos, como documentos étnicos e psicológicos de alta importância, provenientes de um fundo primitivo comum, ou correspondendo a épocas e cruzamentos de raças anteriores aos tempos históricos. Desta compreensão séria nasceu o interesse com que começavam o ser investigados os contos populares em todos os países, alargando-se cada vez mais o campo comparativo e facilitando-se por esse meio a organização de determinados ciclos de ficções, e a demonstração dos elementos míticos de que eles são o último vestígio. Jacob Grimm foi seguido imediatamente em 1817 por Frederico Schmidt, que na sua tradução de dezoito contos da colecção das novelas italianas de Straparola ajuntou a maior soma de elementos comparativos colhidos nos novelistas da Renascença, nos fabliaux da Idade Média, e nos livros orientais; o próprio Grimm, em 1822, anotando a sua colecção, sistematizava o processo crítico da novelística tomando-a um capítulo essencial da mitografia. Secundaram os esforços de Grimm em diferentes países Afanasieff, Castren, Liebrecht, Köhler, Ralston, Gaston Paris, Comparetti, Ancona, Gubernatis e Pitré, criando-se associações de Folclore por toda a parte.

4Se para Michelet a história era uma ressurreição, e o que penetrava os documentos da antiguidade passava o rio dos mortos, pela nova direcção achada por Jacob Grimm era possível remontar através das afluentes do curso das tradições poéticas à nascente primitiva da expressão emotiva de todas as concepções intelectuais – o Mito.

5A importância do problema foi compreendida em toda a Europa, publicando-se sucessivamente colecções de contos populares dos povos eslavos e das raças amarelas, dos povos românicos e germânicos, e até das populações selvagens da África. Os trabalhos de Teodoro Benfey, sobre o Pantchatantra da Índia, ajudaram enormemente a restabelecer a cadeia tradicional do Oriente para a Europa, bem como os trabalhos de Silvestre de Sacy vieram esclarecer a acção directa da transmissão dos Árabes; os estudos e recensão sobre as fábulas de Esopo restabeleceram a continuidade das tradições greco-romanas, que Robert acentuou nos fabliaux dos troveiros franceses, e pela investigação das fontes do Decâmeron de Boccaccio se fixou esse fundo de persistência literária das tradições novelescas que se encontra nos exemplos morais dos pregadores da Idade Média, desde o Gesta Romanorum até aos novelistas cultos da Renascença em Itália.

6A crítica literária, coadjuvada pelos modernos trabalhos de filologia, tem procurado fazer alguma luz neste complicado problema da novelística, em que se distingue por um saber especial o Dr. Reinhold Köhler, da Biblioteca de Weimar; podem-se reduzir a três as questões deste intrincado problema:

71.a Qual a origem dos contos, comuns a quase toda a humanidade, entre povos diferenciados pela raça, pela civilização e afastados por espaços e regiões diversas.

82. a Qual a forma da sua transmissão entre as diferentes raças e civilizações.

93. a Qual o grau de persistência nas sociedades modernas.

10A estas complexas questões tem-se respondido com mais ou menos intuição, mas sem a segurança de um método científico. É certo que os contos têm relações com mitos primitivos, de que são uma última transformação; porém, esses mitos não estão suficientemente esclarecidos, donde resulta que a interpretação novelística cada vez mais se confunde. Há raças que pela sua situação só desenvolveram os mitos solares, e outras que exerceriam a sua imaginação formando mitos siderais, meteorológicos, catonianos e agrícolas. «Kuhn, foi o primeiro que fez notar os estádios sucessivos da vida civilizada, pela sua repercussão sobre as mitologias das diversas nações, que eram de uma só nação em diferentes épocas. Houve indubitavelmente uma mitologia dos caçadores, dos pastores, dos agricultores, e também uma mitologia marítima, mas parece-me que as tentativas de Kuhn para definir estes períodos pecam por muito sistemáticas. Em mitologia, quer-se uma larga evolução duradoura, análoga aos três grandes períodos da civilização que o Comte distingue em ofensiva, defensiva e pacífica.» (Max Müller, op. cit. p.41.) Mas antes de tudo, importa estabelecer uma clara noção psicológica do Mito, produto variadíssimo de um estado mental característico. Por aqui se vê quanto perigoso não será para o crítico o reduzir a interpretação dos contos a um sistema único. As analogias de contos asiáticos com outros que aparecem entre as populações negras da África obrigam à formação de hipóteses gratuitas sobre o modo de transmissão pelo contacto com os viajantes europeus. A investigação dos contos das raças da América veio complicar mais o problema, e tornar ineficaz a teoria dos mitos solares para a interpretação da novelística.

11Entre o período de inconsciência primitiva em que as impressões dos fenómenos do mundo exterior eram identificadas com as representações subjectivas, e em outro período de observação crítica e de experimentalismo, houve uma fase apriorística, de contemplação ou intuição mística, de interpretação alegórica, analógica, em que a imaginação prevalecia sobre a razão, submetendo-a às suas expressões metafóricas, comparações, símbolos e diferenciações pelos géneros. A linguagem verbal criou-se nesta actividade mental, e todas as palavras reflectem ideologicamente esse antropomorfismo e sentido ideológico primitivo. Aristóteles, que fixou os processos mentais na Lógica, definiu estes dois pólos da mentalidade humana em Filosofia, ou o pensamento especulativo sistematizado em uma concepção geral, e a Filomitia. Assim como a racionalidade humana criou concepções gerais de Cosmogonias e Teogonias, antes de se elevar à sistematização filosófica, também criou mitos de todos os fenómenos inexplicáveis. Ad ignotum per ignotia. A mentalidade mítica exerceu-se muito antes de sistematizar as criações religiosas, exprimindo-as por mitos figurativos das divindades. Admirando a clara compreensão de Aristóteles, à filosofia, conhecimento das noções abstractas, chamaríamos Noologia, e à Filomitia, conhecimento representado, Noomitia. Esta tão bela noção da psicologia primitiva tem faltado aos que estudam os mitos, considerando-os no seu aspecto hierológicos, e nos sistemas religiosos da Índia e da Grécia, já profundamente alterados pelas coordenações teológicas e sacerdotais, simbolizadas no culto. Desde a simples canção ou hino, a expansão do sentimento afectivo encontra a expressão no mito com a mesma naturalidade com que hoje em dia se repete na tradição popular, em que a Aurora, o Sol, a Noite e a Terra são ainda mitificados:

Despediu-se o Sol da Aurora,
A Aurora fica chorando;
– Cala-te, Aurora, não chores,
Que eu te direi até quando.

(Canc. Pop. Port. I, 271.)

Donde vindes, bela Aurora,
Por onde andaste ’té agora?
«Alegra-te, mulher forte,
Que a Noite te parecia a morte.
(Id. II, 207.)

12O Sol no hino popular é esse herói que morre prematuramente, cantado nas vetustas épocas das dinastias solares:

O Sol quando nasce é Rei,
Ao meio-dia é morgado;
De tarde ele está doente,
A noite é sepultado.
Já lá vem o Sol nascendo,
Que é o Rei da Alegria;
Quem se pode esquecer dele,
Se nasce todos os dias?

13A Terra e os seus produtos, que Mannardt considerava a principal fonte mítica, ainda hoje encontram a mesma concepção popular:

Ó Terra, que tudo crias,
Ó Terra, que tudo comes,
Ó Terra, que hás-de dar conta
Das mulheres, mais dos homens.
O Trigo é pai da gente,
O Milho é seu irmão,
O Centeio é seu primo,
Ó que bela geração.
(Canc. Pop., I, 316.)

14O conhecimento dos caracteres observados, para representar os objectos, tomava a forma de um saber oculto especial, constituindo os Enigmas, que se explicam por contos. Em uma adivinha popular portuguesa, acha-se esta tradição que penetrou do povo ária nos hinos védicos, descrevendo o Céu:

Curral redondo,
Vacas ao lombo,
Moço formoso
Cão ravinhoso?

15Portanto o Mito não foi uma doença da Palavra, como julgou Max Müller; foi o exercício dessa faculdade ou estado mental da Filomitia (Aristóteles) ou psicologicamente Noomitia. São coevos e simultâneos os Mitos, que deram corpo aos Deuses, e os Mitos que se desenvolveram em Contos.

16«Quase todos os mitógrafos sérios concordam sobre este princípio fundamental: «que os deuses foram originariamente as representações personificadas dos principais fenómenos da natureza (Platão, Crátilo); os factos que nós consideramos como acontecimentos naturais foram tidos por actos destes personagens, e desde que se tornam agentes destes contos maravilhosos que efectuaram, necessariamente resultou desta concepção das faculdades as obras da natureza, como emanando de um acto de vontade individual, e não tardou em engendrar contos do mesmo género, embora faltasse o assunto.» (Max Múller, Nov. Estudos de Mitologia, p. 56.) Chegada a este ponto a identificação dos fenómenos naturais em deuses, estes fixaram-se como tipos de superioridade, a que se compararam as individualidades humanas preponderantes, os Heróis (semideuses) e por fim identificar-se uma realidade de personagens históricos. A representação dos deuses em figuração humana, antropomorfismo, é uma obra teogónica do génio grego que actuou na Civilização.

17«A grande importância dos citados cantos e contos populares, transmitidos pelos velhos Árias da Índia: são encontrados em nosso tempo em certas tribos arianas (Letes, Russos, Germanos), é a facilidade que eles nos oferecem de antever a génese dos mitos, o mesmo que dizer a própria evolução da inteligência popular, pelo fenómeno da formação mitológica...» (Max Müller, Nov. Estudos de Mit., p.73.)

18Desde Huet com a célebre Dissertação sobre a Origem dos Romances, escrita para acompanhar o romance Zaida de M.me de Lafayette, derivam-se do Oriente todas essas ficções, não por documentos, então ignorados, mas por considerandos subjectivos, sobre o estilo imaginoso, figurado e alegórico dos Índios, Persas, Egípcios e Árabes. Limitou-se a dissertação do erudito bispo de Avranches como mero ponto de partida para a crítica que a transmissão das fábulas e contos se derivou da Índia; Silvestre de Sacy, Loiseleur des Longchamps, Benfey e Max Müller, no seu ensaio sobre a Migração das Fábulas, adoptaram esta corrente tradicional. Porém a descoberta de contos tradicionais na civilização do Egipto, e a origem semítica de muitas fábulas e mitos helénicos, levam a reconhecer outros focos de irradiação. Por último, a grande persistência dos contos nas raças amarelas, tendência aproveitada pela revolução religiosa do budismo, e que ainda hoje se observa nas raças nómadas da Alta Ásia, nos Calmucos, nos Ávaros, no elemento tártaro dos povos eslavos, onde esta vivacidade tradicional é enorme, coadjuvam a fixar melhor o problema das origens ligando a investigação do sentido mítico ao exame da situação social representada nos contos. Assim esses três dados do problema devem ser estudados simultaneamente. Vamos tentar uma coordenação da novelística segundo estas indicações.

  • 1 No Curso de Filosofia Positiva, t.v, p. 25, Augusto Comte caracteriza o fetichismo: «pelo impulso l (...)

19Assim como nas religiões mais abstractas e nos cultos mais humanos, como o prova Tylor, subsistem concepções e ritos persistentes de estados morais inferiores, também nos contos populares das nações ainda as mais civilizadas conservam-se elementos da fantasia e do modo de ver das tribos selvagens. É por aqui que se deve começar a genealogia das ficções. O facto de existirem contos comuns às tribos negras da África e às civilizações da Europa, indica-nos o caminho para restabelecer a evolução mental, subindo das concepções concretas até às noções as mais abstractas. Na morfologia dos contos há um desdobramento gradual que corresponde ao progresso mental: a Fábula, nascida de uma simples comparação material, eleva-se ao intuito moral no Apólogo, fixando-se na forma literária, e dissolvendo-se na corrente oral que apenas conserva a conclusão ou moralidade do Anexim. A fábula, depois da metáfora, é a forma a mais rudimentar do conto; nasce desse estado mental subjectivo, e desse sentimento religioso do animismo em que se dá fala às coisas inanimadas, como as pedras; esta faculdade subsiste ainda nos processos retóricos da prosopopeia, e nas imprecações espontâneas do povo. Nos hábitos populares aquele que descreve reduz tudo à forma de narrativa dialogada, e o que escuta muitas vezes confunde a expressão concreta das figuras da linguagem com uma realidade. É frequente nos contos populares a antropofagia; e os poderes mágicos das pedras, das plantas e dos animais representam um estado mental a que corresponde na religião o período fetichista. É este o verdadeiro ponto de partida para a investigação da origem dos contos; os mitos siderais ou solares correspondem já a um elevado estado mental em que predominam as concepções politeístas, em que as forças da natureza se antropomorfizam, e por isso os contos não podem ser exclusivamente interpretados por um sistema de concepções mais adiantadas do que muitas das situações que encerram. Nos contos há o conflito de seres malévolos, elemento preponderante na credulidade fetichista, e os poderes mágicos são um característico de cultos decaídos e de raças escravizadas, que já se não encontram nas épocas politeicas. A concepção de Augusto Comte sobre a sucessão dos períodos religiosos da humanidade, começando pelo fetichismo, elevando-se ao politeísmo e depois ao monoteísmo, tendo a vantagem de coordenar a evolução do espírito partindo das noções concretas para as ideias abstractas, coadjuva imensamente a achar-se o nexo entre estas criações ideais, mas inteiramente subjectivas dos contos1. Grandes filólogos e mitógrafos, desconhecendo esta transição natural dos sistemas religiosos, assim como foram levados ao absurdo de afirmar a existência de um monoteísmo inicial da humanidade, também colocaram o campo de elaboração dos contos exclusivamente no período da actividade mítica do politeísmo, e de um modo indistinto sem observarem se esse politeísmo era semítico ou árico, porque fazem entre si profundas diferenças, e os mitos se eram populares ou já sistematizados em cultos. Por isto se vê que o problema das raças é também indispensável para a inteligência dos contos; a não consideração deste dado fez com que derivassem os contos europeus directamente da Índia, sem discriminarem o elemento que compete às raças negróides, cuchitas e dravídicas, e às raças amarelas, quer as da Alta Ásia, quer as que precederam os Árias na ocupação da Europa. Se ainda hoje existem usos e superstições dos períodos ante-históricos da humanidade e das raças ante-históricas da Europa, porque se não teriam conservado alguns contos? As lendas das cidades arrasadas, está hoje demonstrado que derivam da tradição das cidades lacustres. Os anões habilidosos, que possuem riquezas, são o vestígio das populações metalúrgicas mongolóides, como os Cálibes e os Dáctilos; os peixes salvadores, do maravilhoso popular, levam-nos para esse mundo acádico, como as serpentes benéficas, que se transformam em donzelas ou em príncipes, pertencem ao panteão cuchito-semita. Os temas dos contos estão muito confundidos; importa separar-lhes os seus elementos constitutivos pelos dados da etnografia e da hierologia, e por este processo é que nos aparecerão como uma concepção mítica, que começa no animismo, até chegarem à idade actual exprimindo situações modernas e históricas, anedóticas, e obras literárias ou morais. Na linguagem popular existem locuções demarcando as épocas da credulidade, tais como Quando as pedras falavam, Quando Deus andava pelo mundo, Quem quer bolota é que trepa, e ainda um vago período histórico, como o dos Normandos e Tártaros para a Europa, e o tempo dos Mouros para a Península Hispânica.

20O fetichismo, como forma espontânea da religião, representa também o estado do espírito humano na sua exclusiva concepção concreta; o homem anima todas as coisas, dá-lhes vontade própria, fá-las causas de si mesmas. Se esta capacidade se reflecte na linguagem pelas metáforas arrojadas, e no simbolismo material que nos trouxe às concepções abstractas (como div e divino, jus e justiça), ela exerceu-se também pela narrativa novelesca da luta das forças malévolas, e dos triunfos da argúcia contra a ferocidade brutal. A antropofagia nos contos, o ardil do fraco, as cavernas dos ogres, e a cooperação dos objectos inanimados são os vestígios deste período imensamente poético do fetichismo, ainda persistente nas crianças e no povo. O fetichismo apresenta uma evolução na sua credulidade, começando pela crença animista e culto dos objectos inanimados (Manituísmo), depois o culto dos corpos celestes (Sabeísmo), e por fim o culto dos produtos naturais (Henoteísmo) e coisas vivas (Totemismo). Nos contos populares ainda nos aparece o Manitu na boneca que se agarra ou que dá riqueza, na cacheira, que desanca; o sabeísmo, em Tom Puce, Petit Poucet ou João Feijão representando uma estrela da Grande Ursa; o totem, que nos aparece nos nomes de Grilo, de Feijão, dos anões e ladinos tradicionais, e a fava que se transforma em criança, ou a raposa na sua luta com o lobo, representando os conflitos das tribos fetichistas.

21O conto, neste período social e religioso, tem outras causas que provocam a sua invenção; é uma delas o metaforismo da linguagem. Quando a criança fala, ainda hoje mitifica. Max Müller entendeu considerar o mito como uma doença da linguagem; ora o mito antes de ser expresso pela palavra é uma representação do espírito, é um estado mental. Hoje mesmo se fabricam espontaneamente contos entre o povo nascidos de analogias etimológicas, ou de equívocos de linguagem; e o que se repete com frequência em uma idade de crítica, era geral em uma idade de sincretismo mental, em que não havia uma justa relação entre a realidade e as representações subjectivas. A linguagem não podia exprimir relações gerais e abstractas; por assim dizer significava, adstrita ao sentido concreto e esse por meio de comparações. Na China o vocábulo que exprime a fábula significa comparação (Pi-yu). Foi comparando as coisas entre si, por meio de prosopopeias que se fizeram as fábulas onde raras vezes entram mais de dois personagens. Os homérides representavam Aquiles comparando-o ao leão cercado de caçadores e os Troianos a um bando de grous. As comparações, assim como produziram a fábula enquanto a diferenças, produziram os enigmas pela aproximação mais ou menos pitoresca das semelhanças. Estas duas formas tradicionais encontram-se muitas vezes confundidas pela contiguidade da origem; os contos de enigmas (Rätselmärchen) são uma das formas mais antigas da novelística, pelo estado mental que representam. A própria linguagem subordinada à expressão de um pensamento, era uma figuração dramática; falar é derivado de fabular, o modo de comunicar concretamente um pensamento, e a palavra é a Parábola, uma comparação trazida para uma situação determinada, e já com intuito moral. O poder das palavras, que corresponde às religiões fetichistas propiciatórias e esconjuratórias, aparece com frequência nos contos populares; e essa relação entre o Nomen, o Omen e o Numen, que Max Müller vê nos mitos, é um metaforismo da linguagem, porque deriva de um estado mental animista. A palavra desdobra-se como epíteto em entidades independentes; o prestígio augural faz com que se transite para a lição moral, como na frase: perceber a linguagem dos pássaros; o homem desabafa em prosopopeias espontâneas, como ainda hoje a criança quando se molesta em qualquer objecto material; Polifemo desabafa com os seus carneiros, Heitor faz discursos aos seus cavalos, e Roland fala com a sua espada. Nos contos populares há o poder maravilhoso das Pedras (Lapidários), das Plantas (Viridiários), das Aves (Aviários); os animais como o lobo, a raposa, o leão e o cavalo, têm relações morais com o homem; estas situações não podiam nascer e conservar-se sem um sentido real, e esse é o de provirem de uma primitiva concepção fetichista; os horóscopos do nascimento, que se personificaram na acção das Fadas, são a consequência da fase sabeísta do período fetíchico. Assentada esta base, fácil é de inferir em que povos se originaram as fábulas, e como elas se desenvolveram passando como temas consagrados para outras civilizações que lhes deram intuito moral no Apólogo. A raça negra é a que ainda se não elevou do culto fetichista, e as raças amarelas, como os Acádios e Chineses, desenvolveram o seu fetichismo de um modo abstracto sintetizando-o na abóbada celeste, An, Zi-An ou Thian. É nestas duas camadas que devem ser procurados os tipos rudimentares dos contos, ainda na forma de lapidários e bestiários. Assim tornam-se de fácil explicação os factos extraordinários da simultaneidade das fábulas do ciclo da Raposa na Europa da Idade Média e nas populações selvagens da África, como se vê pela colecção do Dr. Bleck, e da semelhança dos contos dos Zulus com os europeus, como notou Max Müller, analisando as Nursery tales, traditions and histories of the Zulus, coligidas por Callaway.

22Na África Setentrional, Egipto, Abissínia, Berberes de Argel e Marrocos possuem um repertório de contos semelhantes aos contos europeus; provieram da Ásia pelo islamismo, e difundidos pelos Berberes entre a população da África Ocidental e Central desse fundo europeu.

  • 2 Avadanas, t. i, p. 152. Trad. de Stanislao Julian.
  • 3 Ibidem, t.ii, p.41.
  • 4 Ibid., t.ii, p.138.
  • 5 Ibid., t.i, p.185.

23Por outro lado, já vemos sem surpresa a tradição chinesa Dos Membros e do Estômago aparecer ali com a forma de A Cabeça e o Rabo da Serpente2, quando nunca Tito Lívio teve conhecimento de essa fonte para a transportar para a boca de Mnenio Aggripa, nem tão-pouco São Paulo para a aproveitar nas suas Epístolas. A lenda céltica de San Kadoc, que fica extático à espera que choque o ovo que um passarinho lhe pôs na mão, aparece na China, no conto de Buda e os Ovos de Pássaro3; a fábula de La Fontaine e os contos facetos do amante que é depilado das cãs pela amásia moça e dos cabelos pretos pela velha, aparece na forma chinesa sob o título O Marido Que Depena a Barba4; enfim, até a anedota corriqueira do sovina que ia fazer a barba a Cacilhas, e que se julgava local, lá se repete no Extremo Oriente com o título O Credor e o Devedor5. O célebre conto da Matrona de Éfeso foi encontrado por Abel Remusat na literatura chinesa. É portanto necessário discriminar estas duas camadas antropológicas, o elemento negróide, representado pelos Cuchitas, e o elemento mongoloide, representado pelas tribos da Alta Ásia, elemento tártaro da Rússia, da Hungria e da Turquia, e a persistência do elemento ibérico em todo o Ocidente da Europa no período ante-histórico; é nestas duas camadas que se elaboraram todas essas variedades de contos que só uma imaginação fetichista pode criar directamente míticos, mas com intuito artístico. As tribos nómadas da Alta Ásia são ainda hoje ávidas de narrativas; as fábulas, na civilização helénica, representavam também no seu título a sua proveniência, chamavam-se líbicas, etiópicas ou esópicas, como quer Lassen. Foi entre as raças amarelas que o budismo se propagou com as lendas do Pantchatantra, da mesma forma que o cristianismo se generalizou nos povos da Europa por meio das lendas cuchito-semitas do Pentateuco, e por meio dos exemplos dos pregadores tirados dos contos árabes. A Índia teve os seus mitos, que desenvolveu na forma popular dos Puranas, como a Ásia semítica teve outros que os doutores rabínicos compilaram; mas não são estes o elemento ou fundo comum onde se encontram os gérmens dos contos gerais entre os dois continentes.

24O barão de Eckstein caracteriza as protocivilizações, que precederam as indo-europeias baseadas sobre as noções científicas, com as seguintes observações:

25«O mundo primitivo pode dividir-se em três grandes características: ou o pensamento é expresso por sinais e estes sinais se explicam por hieróglifos; ou o pensamento se exprime por tropos e estes tropos se explicam por parábolas; ou enfim o pensamento se exprime por mitos, e os mitos se explicam por legendas.» Estes caracteres quadram perfeitamente com o grande grupo de civilizações compreendidas sob o nome de turanianas e cuchito-semitas. Os povos, que como o Egipto, a Caldeia e a China se elevaram da representação ideomorfa e icástica à generalização hieroglífica, desenvolveram um portentoso génio artístico, quer na perfeição dos detalhes, como o chinês, quer nos efeitos gerais e na grandeza, como os egípcios e os caldeu-babilónicos. Os povos que levaram a figuração material até à representação abstracta dos tropos, elevaram-se às criações mais extraordinárias da poesia, criaram a capacidade mítica e inventaram as epopeias espontâneas, como as raças semíticas, essencialmente evemeristas na sua história; a parábola, que deriva da forma elementar do tropo, é também o rudimento de expressão das noções morais. O mito é já um sistema de concepções gerais para explicarem a complexidade dos fenómenos e é essa tendência racional explicativa que o dissolve em legendas; a não ser esta característica o mito reduzia-se à simplicidade de um tropo. É esta a fase intelectual em que nos aparecem as raças áricas antes de se elevarem às noções científicas que caracterizam a civilização greco-romana, e que lhes deram a hegemonia da humanidade.

  • 6 Histoire générale des langues semitiques, pág.129.
  • 7 Op. cit., pág.321.

26Tanto nas raças amarelas, como entre a cananeia ou cuchito-semita, o fetichismo foi exclusivo e daí o carácter concreto e activo da sua civilização, imobilizada no imperativo das ideias morais. As fábulas das coisas e dos animais destinadas pela sua comparação à inferência de uma ideia moral, tornaram-se uma forma literária, quer com um carácter filosófico como o Apólogo, ou com um sentido religioso como a Parábola. Em sociedades que nunca se elevaram acima da constituição patriarcal, e em que a família se dissolvia na tribo, as narrações fictícias tornavam-se uma necessidade moral, e isto mesmo vemos nos costumes dos Árabes, o ramo semita mais retardatário, que tinha os seus rawi ou narradores na época em que as tribos não estavam ainda unificadas pelo islamismo, e adoravam os seus fetiches, de que a pedra negra da Caaba se tornou o principal. É a um elemento negróide ou cuchita que se deve atribuir esta persistência de elementos tradicionais entre os Semitas; no Livro dos Reis, se lê da actividade especulativa de Salomão: «E ele tratou de todas as árvores, desde o cedro que cresce sobre o Líbano até ao pequeno hissope que vegeta nas paredes; e ele tratou dos quadrúpedes, das aves, dos reptéis e dos peixes.» Renan entende a natureza deste saber como « moralidade tiradas dos animais e das plantas, análogas àquelas que nós lemos nos Provérbios (capítulo xxx) e às dos Fisiólogos, que foram tão populares na Idade Média.6» A proveniência deste movimento intelectual que se não continuou em Israel, é atribuída pelo mesmo semitólogo ao elemento idumeu: «A Idumeia, sobretudo, parece ter contribuído em grande parte para este movimento de filosofia parabólica; a ciência de Teman (tribo idumita) tornou-se proverbial; o herói e os interlocutores do Livro de Job são árabes e idumeus.» Remontando ao fundo do problema étnico, Renan deduz dos trabalhos dos modernos assiriólogos, que uma mesma população industrial, comercial e materialista forneceu elementos comuns às civilizações do Egipto, do Tigre e Baixo Eufrates: «A cor obscena das religiões da Assíria e da Fenícia, tão oposta ao pudor natural dos Semitas e dos Árias, o mito sefeniano de Jope, o culto cuchita de Sandan ou Sandak e de Adónis, as genealogias fabulosas que fazem descender Agenor e Fénix de Belo, de Líbia, de Egipto, e os põem em relação com Cefeu e os Etíopes, a lenda que os liga a Mémnon, explicam cabalmente esta hipótese.» Aproveitando esse elemento comum à Índia e à Arábia, como negróide, como o reconhece Weber, e que Renan considera com os antigos Aditas da primitiva civilização do Iémen, ele recompõe muitos caracteres étnicos: «Lokman, o representante mítico da sabedoria adita, lembra Esopo, cujo nome pareceu a Welcker conter uma origem etiópica (Aisopos, Aithiops).» Reforçando esta inferência pelas conjecturas de D’Herbelot, acrescenta: «Também na Índia a literatura dos Contos e dos Apólogos parece provir dos Sudras. Porventura este modo de ficção, caracterizado pelo papel que nele representa o animal, discrimina um género de literatura próprio dos Cuchitas.7» Em nota acrescenta Renan, que o culto e a preocupação constante do animal são um dos traços mais salientes das raças cuchitas, considerando-os representantes da raça negróide da Índia: os Caucicas; foi entre esta raça que se propagou o budismo por meio dos seus contos e apólogos, e foi pela irradiação do budismo que um grande número de contos transmigraram para o Ocidente e até para o cristianismo.

  • 8 Premières civilisations, t.i, p.337.
  • 9 Ibidem, p.391.
  • 10 Ibidem, p.395.
  • 11 Renan, Hist. générale des langues sémitiques, p.281.
  • 12 Husson, La Chaine traditionelle, p.99.

27A descoberta do Conto dos Dois Irmãos, no papiro hierático d’Orbygny, vem explicar de um modo plausível a passagem dos mitos cuchitas para a forma literária de novela, redigida sobre a lenda elaborada pelo povo. Lenormant estabelece a transição dos mitos estranhos ao Egipto para essa narrativa dos passatempos da xix dinastia, principalmente do jovem príncipe que veio a ser Seti II. Diz Lenormant, falando do escriba egípcio: «Fez como o nosso Perrault; deu uma forma fixa e literária a um conto popular, e este conto, como a maior parte dos outros entre todos os povos, não era senão um mito degenerado, despido do seu carácter religioso.8» Como estrangeiros ao Egipto esses mitos foram tratados sem respeito, com a espontaneidade popular da transmissão legendária; a época em que se determina a entrada de elementos culturais estrangeiros no Egipto é na xviii dinastia, e esses mitos eram frígios, como o de Átis, fenícios e sírios como o de Adónis, ou gregos como o de Zagreus. Conclui Lernormant, do confronto da acção do conto com os dados destes mitos semelhantes: «São estes três mitos famosos e particularmente o de Átis, de que o romance dos Dois Irmãos reproduz todos os dados fundamentais, e em certos casos até nos detalhes mínimos e mais característicos.» A traição da uma mulher desatendida, tema das lendas da vingança da mulher de Putifar contra José, e de Fedra contra Hipólito, é a base do conto passado entre os dois irmãos Anpu e Batu, o seduzido pela cunhada. Estes ódios feminis aparecem no mito de Átis, por não ter acedido aos desejos de Cíbele; como o jovem deus frígio, Batu também se emascula, circunstância a que alude igualmente o mito de Adónis. Batu confunde a sua vida com a de um cedro, onde guarda o coração, da mesma forma que Átis se transforma em pinheiro. Lenormant desenvolve este paralelismo, achando o acordo com os complicados episódios do conto, e concluindo: «que o romance dos Dois Irmãos não é outra coisa senão a transformação em contos populares do mito fundamental nas regiões da Ásia Anterior, do jovem deus solar morrendo, e tomando sucessivamente à vida, mito de que temos a versão sírio-fenícia na fábula de Adónis, a versão frigia na de Átis e finalmente a versão helenizada em uma época ainda agora impossível de determinar, na lenda de Zagreus.9» O domínio dos faraós da xxii e xix dinastias sobre a Síria, determinou um certo sincretismo religioso como se vê na associação dos cultos de Biblos e do Baixo Egipto e na legenda de Osíris-Adónis10; os deuses cananeus Baal, Anat, Kedesch, Astarte e Sutekh entraram no panteão egípcio. Nestes sincretismos religiosos há a decadência de muitos elementos míticos, e por isso uma sucessiva reelaboração em lendas e contos; a crise religiosa no budismo na Índia reflectiu-se ainda com este carácter na Ásia Anterior11; o orfismo na Grécia e o cristianismo na Europa provocaram nas imaginações esta forma secundária da ficção, ou o tipo do conto ou lenda. O conto dos Dois Irmãos, restabelecendo-nos o caminho da sua derivação mítica, tem um paradigma actual entre os Bechuanas, o que nos confirma a necessidade de procurar a forma de certos mitos, ou o tipo da sua degeneração novelesca, nas raças selvagens e no elemento negróide12.

  • 13 Ethnologie gauloise, t.iii, p.47.
  • 14 Myth. zoologique, t.i, p.164 a 184.
  • 15 Ésquilo cita uma fábula líbica, dizendo: «Uma fábula líbica conta que um dia a águia ferida contemp (...)

28O que vemos com a civilização cuchita em relação aos mitos semitas, dá-se também com a civilização turaniana no seu contacto com os Árias. Husson considera os Peixes salvadores dos contos populares como provenientes das lendas caldeu-babilónicas; e Belloguet vê nas figuras dos Ogres e dos Ciclopes, em rivalidade com os Ulisses e Petit Poucet, como um antagonismo nos elementos das raças do Ocidente13. Dos mitos que se acham na epopeia finlandesa do Kalevala, e que se reproduzem nos contos populares europeus, deduz Gubematis, que primitivamente as raças turanianas e áricas se acharam em contacto, tendo entre si certas conformidades, hoje desconhecidas pelo diferentes graus de civilização em que se acham14. Bergmann, no seu trabalho sobre os Getas, explica cabalmente este problema; também pelos Contos Populares Estonianos, publicados por Frederico Kreuzwal, e anotados por Köhler, em 1869, aparecem narrativas que parecem as formas completas de muitos contos europeus; aí aparece a velha feiticeira que tem presas as donzelas, os jovens príncipes perdidos na floresta, o segredo da linguagem dos pássaros, os cavalos mágicos, as transformações maravilhosas, o anão inteligente e a boneco-fada. O vigésimo conto estoniano é uma variante do Barbe-Bleu, comum a todos os povos da Europa. Gubernatis interpreta o sentido mítico desses contos, o que é mais plausível quanto mais atrasado está o povo a que pertencem, sendo esse o meio de pelo processo comparativo vir a determinar a intenção mítica perdida na novelística dos povos mais civilizados. Nos Awarische Texte, publicados por Schieffner, acha-se também um conto popular bastante desenvolvido semelhante ao nosso intitulado os Dezasseis Quintais, que se encontra igualmente na colecção siciliana de Laura Gonzenback. Outro mistério da tradição, desde que se desconhecer o contacto primitivo das raças nómadas da Alta Ásia com os Árias; a essas raças pertencem o grupo turaniano, e os povos que sob o nome de Líbios e Iberos, e de Eusk e Aquitânios, nos aparecem ocupando o Ocidente da Europa: Se um certo número de costumes e superstições tem sobrevivido até hoje na civilização moderna dessas idades ante-históricas, porque não subsistirão os contos como últimos restos de mitologias extintas? O Tributo das Donzelas é considerado como uma degeneração mítica, como se deduz da comparação com outras lendas que tornam mais evidente essa relação. O contacto das raças nómadas ou mongolóides com os Árias15 é que nos explica como um certo número de fábulas e contos chineses, como o da Matrona de Éfeso, aparecem na Europa sem que seja possível descobrir uma conexão histórica entre as duas civilizações. Apresentaremos um facto além de muitos já observados no domínio dos costumes e superstições populares; Gregorovius, no seu livro sobre a Córsega, cita um canto popular no gosto dos romances peninsulares, que nós encontramos na tradição oral do Minho em forma de conto em prosa, adaptado aos interesses da vida moderna. Eis o vocero corso:

29«Um rapaz das montanhas deixa sua mãe, pai e irmã e vai para a guerra sobre o continente. Ao cabo de muitos anos regressa feito oficial. Caminha para as suas montanhas; ninguém dos seus o reconhece. Só se dá a conhecer a sua irmã, cuja alegria é indizível. Ele depois diz ao pai e à mãe, que ainda o não tinham conhecido, que preparem para o dia seguinte um esplêndido banquete, para o qual dará bastante dinheiro. À noite pega na sua espingarda e vai para a caça. No quarto deixou o seu saco, onde tinha bastante ouro. O pai vê estas riquezas e planeia matar o estrangeiro durante a noite. O terrível crime é cometido. Eis que o dia chega, soa o meio-dia, e como o irmão não aparece, a irmã pergunta novas do estrangeiro: no seu terror, ela revela aos pais quem ele era. Precipitam-se então para o quarto, o pai, a mãe, a irmã; – ei-lo prostrado no próprio sangue. Então começa o lamento da irmã.»

30Gregorovius acrescenta sobre este dado do vocero corso: «Esta história é verdadeira…» Eis a versão portuguesa:

31Na tradição popular do Minho, é um rapaz que regressa do Brasil muito rico; procura a cabaninha de seus pais na serra, e encontra-os muito pobres e já velhos; não se lhes dá a conhecer, e pede pousada para dormir naquela noite, na esperança de se dar a conhecer no dia seguinte. Durante a noite os velhos vão ver a mala do forasteiro, e para se apoderarem da sua riqueza matam-no e enterram-no. Passados dias é que souberam da chegada do filho, e confirmada a tremenda apreensão do seu remorso, a mãe endoudece e o pai vai entregar-se à justiça.

32Para nós é este um tema primitivo, próprio de uma sociedade rudimentar que produzia situações brutais como a que se celebra na Silvaninha, no Rico Franco, no Dom Pedro e outros romances tradicionais. A sua aproximação do vocero corso obriga-nos a remontar a sua origem a uma antiguidade pré-árica; na Córsega ainda existe na forma de verso, mas adaptada a situação ao período das guerras continentais de Napoleão do princípio deste século; em Portugal há ainda vestígios de forma poética no romance da Pastorinha e Linda Pastora, porém a parte repugnante caiu totalmente, ficando apenas a forma vulgar de um caso restrito à província do Minho, que é a que alimenta mais a emigração para o Brasil.

  • 16 Bergmann, Les Getes, p.146.
  • 17 Ibidem, p.216.
  • 18 Vide sobre esta lenda o estudo de Stanislao Prato, L’Uomo nella tuna, onde vêm bastantes dados comp (...)

33Alguns contos populares actuais correspondem ainda à linguagem simbólica das tribos cíticas, onde nasceram como modo de expressão; é assim que Plutarco conta como o monarca cita Skilvarus, para mostrar aos seus cinquenta filhos que a união faz a força, manda juntar cinquenta varas, que reunidas não podem ser quebradas16. A acção emblemática transformava-se espontaneamente em uma narrativa alegórica, na forma de comparação (no chinês pi-yu; no gót. gajuka), ou na forma de parábola enigmática (no gót. frisahts.) Todas estas formas persistem na novelística popular; a crença religiosa dos povos citas, de que a Lua é a mansão dos mortos, persiste ainda em toda a Europa na lenda do homem que foi arrebatado para a Lua. A deusa Artin-paza, ou a própria Lua, é que recebia em si as almas dos mortos17; a universalidade da lenda só se pode explicar pela dissolução de uma crença comum18.

  • 19 Mythologie des plantes, t.ii, p.36.
  • 20 Além da Fábula dos Membros e do Estômago e da Matrona de Éfeso, comuns à China e à Europa, temos, e (...)

34O restabelecimento da cadeia tradicional só pode conseguir-se procurando os elementos étnicos e antropológicos comuns aos diferentes povos. É assim que a enorme dispersão das raças mongolóides para o Ocidente e Norte da Europa, bem como o seu fetichismo inicial, nos explicarão as condições de unidade de certas fábulas e contos europeus que ainda hoje se vão encontrar no Extremo Oriente. Os filólogos não se atreviam a recuar para trás das raças áricas, e por isso estes problemas, muitas vezes incompatíveis com as concepções politeístas, eram explicados por comunicações históricas forçosamente recentes. São enormes as relações dos contos e crenças do povo português com o folclore da Rússia; este facto toma uma verdadeira importância quando se vê que se generaliza ao Ocidente europeu. Diz Gubernatis: «Tem causado certa impressão a grande parecença dos contos sicilianos com uma dada série de contos russos; mas todo o pasmo deve cessar, se se pensar simplesmente que a proveniência de um grande número de contos russos e sicilianos é comum, isto é, essencialmente bizantina.19» A causa da unidade é mais remota; a Rússia foi povoada por uma enorme camada de elemento mongólico, e o elemento líbico e ibérico do Mediterrâneo, vindos da Ásia Meridional pertenceu a essa mesma raça. Assim se determina este fundo étnico comum, pelo qual se compreende a identidade das tradições da Rússia com as da Sicília e Portugal, fenómeno também notado por Max Müller entre as tradições dos Zulus com as da Europa, bem como das aváricas e calmucas, e especialmente das tradições chinesas com a Europa Ocidental20. Nos estudos da novelística ainda se não tinha determinado este fundo proto-histórico da civilização humana, atribuindo estes documentos similares de tradições importantes à frase vaga – identidade dos processos do espírito humano, quando apenas são os fragmentos que ficaram de uma raça que formou as concepções fetichistas, as quais para outras raças mais especulativas se conservam como ficções.

35Nas civilizações que chegaram ao período das religiões politeístas, é que os mitos tendendo a uma unificação espontânea, recebem quase que exclusivamente uma representação antropomórfica. Comte notou o modo dessa unificação, como na árvore que sintetiza a floresta, e no homem que é a manifestação da vontade. As raças semítica e árica distinguem-se das raças e civilizações anteriores pela sua elevação ao politeísmo, conservando em si os elementos recebidos do contacto com os cuchitas e mongolóides. Há entre estas duas raças superiores diferenças provenientes não só dos seus cruzamentos étnicos, como já notámos, mas do seu meio ou habitat; o politeísmo dos Semitas é antropopático, ao passo que o dos Árias é antropomórfico. Na investigação dos mitos primitivos que subsistem ainda nos contos populares, importa distinguir esta dupla proveniência, sem o que infalivelmente se vai cair em um sistema artificial de alegorias. No seu estudo sobre as origens do Petit Poucet, Gaston Paris parte desta distinção essencial: «Sabe-se que os povos indo-europeus não possuem e nunca possuíram religião propriamente sideral. Os deuses da nossa raça são a personificação mais ou mensos distinta e mais ou menos antiga dos grandes fenómenos naturais. Nascidos provavelmente em um país de montanhas, sob os climas violentos da Alta Ásia central, a religião indo-europeia tem em cada um dos seus mitos o vestígio da alegria ou do medo que lançavam na alma ainda quase que unicamente sensível dos homens de outrora convulsões terríveis, mas muitas vezes benéficas, que eles tinham de sofrer sem recursos de defesa.» É por isso que os principais mitos se baseiam sobre os fenómenos da sucessão do Verão e do Inverno, o grande drama mítico de todos os povos indo-europeus, conservado ainda nos costumes e festas civis de toda a Europa; o Vento e as Nuvens, o Relâmpago, o Sol repelindo as sombras da Noite, a Aurora sendo seguida pelo Sol, ou no crepúsculo vespertino sendo sepultada pela Noite, eram representados no drama religioso do culto, nas tradições sociais ou nacionais da Epopeia, e nas conversas e lendas domésticas dos Contos e Enigmas. A vida pastoral era transportada para os fenómenos meteorológicos, e as nuvens eram as Vacas, o Sol era o Pastor, o vento o Rakchasa ou ladrão que as escondia na caverna, finalmente o céu era a grande Árvore da vida que cobria o mundo. Foram estes mitos, que persistiram na civilização dos diversos ramos áricos, o tema comum que se transformou em narrativas sem sentido religioso, mas com o interesse das aventuras dos contos populares.

36A maior parte desses contos pode ser reduzida ao tipo geral em que os personagens se identificam com os mitos do Sol, da Aurora e da Noite, da Primavera e do Inverno. Aplicar este processo a contos de origem cuchita ou mongoloide, ou ainda a tradições de proveniência semítica, é um erro de exegese, que impossibilita o desenvolvimento científico da novelística como complemento da evolução mítica.

  • 21 Petit Poucet, pp.3 e 5.
  • 22 Lenormant, Prem. civilisations, t.i, p.378.
  • 23 Na minha Hist. Universal, t.ii, p.55.

37O politeísmo semita tem outro carácter, a que chamamos antropopático. Gaston Paris reconhecendo a diferença que existe entre os dois sistemas de religiões, escreve: «As grandes planícies em que se desenvolveram as primeiras civilizações semitas não apresentam os espectáculos grandiosos e deslumbrantes das pastagens montanhosas onde a divindade se revelava nas tempestades; a serenidade das noites, a transparência do ar, a ausência de linhas que atraíssem o olhar, tudo contribuía para transportar para o céu os olhos dos pastores que conduziam os seus rebanhos por estes imensos prados. Segundo a tradição da antiguidade, foram os Caldeus os primeiros astrónomos; e antes que tivessem a ideia de observar cientificamente os astros, adoraram o seu esplendor. Eu quero somente constatar, que as religiões indo-europeias não apresentam nada que se pareça com o culto planetário. Jacob Grimm admirava-se de achar esta lacuna entre os Alemães; porém ela é comum aos seus irmãos. Os povos da Europa, pelo menos, não parece terem tido nomes para designar os planetas, etc.21» A diferença de meio, reflectindo-se na diferença dos costumes, repete-se na diversidade das religiões dos Árias e Semitas; portanto os seus mitos não tendo a mesma base de concepções, ao degenerarem na forma de contos hão-de apresentar não só o carácter dos elementos étnicos primitivos (cuchitas e mongoloides) como a personificação dos fenómenos siderais e meteorológicos. Dissemos que os mitos semitas eram antropopáticos; no Egipto o curso solar era equiparado ao da existência humana; Rá, o Sol, passava da mansão da luz ou da vida, para a das trevas ou da morte, e nesta sucessão representava diversas entidades divinas; na sua existência nocturna era Tum, brilhando no meridiano era , e alimentando a vida Quéper. Os deuses sistematizados pelos sentimentos humanos foram divididos em masculinos ou representando a força activa, e em femininos. Osíris, Sol do hemisfério inferior, representava os destinos de uma existência além da morte; e os fenómenos morais do bem e do mal foram também personificados, como Tífon e Sutekh. Para os Caldeus os astros foram representações divinas, que sistematizaram por meio de hipóstases em vastos sistemas religiosos, de que os Siro-Fenícios apenas conservaram o lado sensual dos ritos e as suas formas concretas. O mito principal em quase todos os povos semitas, que desenvolveram o culto das divindades femininas, é o Sol expirando e ressuscitando rejuvenescido, como na paixão de Cristo; pertencem a este grupo os mitos de Átis, da Frigia, o mito de Adónis dos Siro-Fenícios, e o de Dioniso Zagreus, dos Gregos, conservado nos mistérios Elêusinos ou renovado pelos Órficos22; mesmo no Egipto o mito osiriano veio a confundir-se com estes mitos asiáticos, transformando-se nessa forma épica com que a descrevera Plutarco e tal como se acha no Ritual dos Mortos. A influência dos cultos das divindades femininas é que determinou a decadência dos mitos dos jovens-deuses solares em contos como o dos Dois Irmãos ou como o de José e da mulher de Putifar, ou o conto de Sansão, que entre os Assírios babilónicos ainda nos aparece como o deus Simson. A passagem dos mitos caldeu-babilónicos para lendas populares ou históricas entre os Semitas está hoje determinada pela aproximação dos nomes dos Patriarcas do Génesis dos deuses decaídos, como Henoch com Anak, Set ou Schet com Schita, Noé com o peixe salvador Nuah23. Thamuz, ou o mancebo chorado pelas mulheres nas montanhas da Judeia, fora, antes de decair em herói épico, uma divindade Damuzi; esta decadência observa-se em outras divindades, que como Istar adorada pelos Fenícios se tornou um Diabo, Astaroth entre os Hebreus.

  • 24 Hist. gén. des langues semitiques, p.125.
  • 25 La Chaine traditionelle, p.102.

38A extraordinária tendência dos Semitas para tudo personificarem, lançou-os numa invenção mítica permanente, de modo que apenas elaboraram em epopeias e contos os mitos da paixão do jovem-deus morto, chorado e ressuscitado; dos nomes dos seus deuses fizeram patriarcas, e dos patriarcas regiões geográficas, fabricando segundo as necessidades da interpretação lendas etimológicas segundo a ininteligência da linguagem arcaica dos seus livros. Renan, falando das lendas etimológicas do Génesis, escreve em nota que este fenómeno é comum a muitos outros povos, tendo originado uma grande quantidade de mitos; exemplifica com a lenda de Dido, que toma posse do terreno abrangido pela pele de um boi, a qual ela cortou em tiras tenuíssimas. Esse terreno chama-se birsa, que em siríaco significa a fortaleza; interpretado este nome por uma língua estranha, birsa em grego significa o couro; daqui a invenção da lenda da aquisição do terreno de Cartago24. Nos contos populares é frequente a intervenção do peixe com o poder protector, dos gigantes poderosos como Sansão, e dos dilúvios e serpentes de sete cabeças, como nos mitos babilónicos que se transformaram na civilização dos Semitas. Husson, no seu livro sobre o Encadeamento das Tradições, indicou a necessidade de alargar as investigações além das antigas migrações áricas e das infiltrações indianas de épocas posteriores «procurando-as com certa reserva entre as raças xamíticas, e porventura também entre as raças turanianas.25»

39Entre os povos os mais afastados pelo espaço, pela raça, existem temas tradicionais, comuns de fábulas, como a mulher que depila o amante e a dos membros e o estômago, que se acham na colecção chinesa dos Avadanas. A preferência das comparações que constituem a fábula, tomadas sempre das relações dos animais entre si, das suas qualidades e hábitos, levam a inferir que esta criação estética teve a sua origem em uma época fetichista da sociedade, em uma civilização proto-histórica negróide, que deu todo o desenvolvimento a essa ordem de concepções religiosas, especialmente na arte e na moral. O epíteto com que as fábulas eram conhecidas na Grécia, revela o conhecimento de tal proveniência, e Theon distingue as fábulas em líbicas (Lassen aproxima o nome de Esopo de Aithiopes), em sibaríticas, frigias, ciliciarias, cariarias, egípcias e cípricas, como que acentuando o seu fundo negróide. Muitas das fábulas de Lokman aparecem tratadas em Esopo; e Neumann, Maracci, Hottinger e Golins unificam os dois poetas fabulistas em um mesmo sentido. Na colecção atribuída a Esopo, aparecem fábulas comuns ao Pantchatantra, como a do Leão e a do Mosquito, a da Águia e a Tartaruga, e do Asno com a Pele de Leão, e a Preza e a Sombra. Revela esta similaridade um fundo comum, que na Índia se determina pela classe ínfima explorada pela propaganda búdica. Na Grécia antes de Esopo, já as fábulas eram conhecidas, e posteriormente à época esópica outras fábulas tradicionais, e transmitidas pelo vulgo, receberam forma literária, não só em obras dramáticas como em obras filosóficas. Em Hesíodo, acha-se a fábula do Abutre e o Rouxinol, em Stesichoro a do Homem e o Cavalo, e em Alceu a da Serpente e o Escaravelho; Arquíloco alude à fabula da Raposa e do Macaco, e a Águia e a Raposa; Eurípides traz a fábula do Homem e a Morte, Platão a do Lobo e a Raposa, e do Leão Doente. As relações das fábulas conhecidas na Grécia com as das raças semitas, levam a inferir da impersonalidade de Esopo, cuja entidade mítica é caracterizada por Vico, Neumann, Unker, Welcker, e Camerarius. A tradição esópica como a tradição homérica, não é escrita; a fábula, como o mito, chegou a ter o seu desenvolvimento épico, como se vê pelo ciclo do Renard, na Idade Média. A transformação da tradição oral em forma rítmica é que fez porventura adoptar o nome de Esopo: Asoph, em hebraico significa o verso, a poesia. O carácter de estrangeiro do género poético, é que se fixou na personalidade de Esopo na qualidade de escravo. Os temas tradicionais foram tratados nas escolas dos sofistas gregos como assuntos de exercícios literários de redacção; eram os Loci communes, também adoptados nas escolas de Roma, cujos Cadernos, achados no fim da Idade Média, vieram a constituir as Fábulas de Fedro, outra entidade sem existência real, formada do epíteto de rocha phaedrica, da qual tinha sido precipitado Esopo, segundo a lenda.

40O conto não foi trazido para a Grécia; pertence à mesma criação de seus mitos em época anterior à sua sistematização por Homero e Hesíodo. Não deve aos povos orientais essa ordem de ficções, como pretendera Huet. O carácter fundamental da literatura grega é a originalidade e transformação evolutiva dos géneros estéticos; não foi alterada na elaboração dos contos. Escreve Gaston Boissier: «Nunca na história literária da Grécia, influência ou imitação estrangeira modificou de uma maneira sensível a marcha de seu génio. Todos os géneros da literatura saem uns dos outros; não são uma importação exterior, vêm a nascer por seu turno dos que o precederam, por um progresso lógico e regular. O romance (conto já escrito) somente nascido em uma época obscura, em plena decadência, é que se ligava com algum custo ao restante; à primeira vista, parecia tão diferente, que se procurava a sua origem fora da Grécia. Erwin Rohde, no seu trabalho fundamental sobre o Romance Grego, reuniu ao encadeamento das formas literárias este anel separado, mostrando como tudo se liga nesta admirável literatura. – Sabe-se que a literatura grega viveu, durante os seus mais belos anos de um certo número de narrativas, transmitidas pela tradição desde os tempos mais longínquos e acumuladas na memória do povo. Elas se reproduzem sem cessar e constituem o fundo destes poemas, que são a admiração do mundo. Os Gregos não sentiam a necessidade de criar assuntos novos, os antigos bastavam para tudo. Essas velhas lendas seguiam a tendência filosófica, e estendendo a Grécia depois das conquistas de Alexandre na Ásia Menor, na Síria e no Egipto, foram reelaborados os géneros literários e as legendas locais, que não estavam coerentes com o Olimpo helénico, foram tratadas especialmente com liberdade e originalidade no período alexandrino.» Escolhiam-se de preferência, na multidão dessa segunda camada de legendas, principalmente as que tratavam de situações amorosas. Foi esse o tema novo, tão estranho a Homero, a Ésquilo, a Aristófanes. Essas legendas da segunda camada eram na transmissão oral contos populares, que se tornaram os belos romances que vieram acordar na Europa no fim da Idade Média, as novelas de Amor.

41Max Müller dando conta da teoria da formação e difusão dos contos tradicionais sustentada por Hahn, retocou-a agregando-lhe a transmissão histórica. Eis a ideia fundamental de Hahn: «As tradições das raças primitivas não foram utilizadas no seu conjunto para formarem o fundo da mitologia divina e heróica, que chegaram até nós. Muitos destes conceitos primordiais sobreviveram até hoje, e vemo-los mesmo, apesar da sua vetustidade desenvolverem-se ainda no espírito popular, reagindo potentemente sobre ele sem que tenham perdido a sua força. – A análise atenta desses documentos neles encontra como fundo primitivo os mesmos fenómenos naturais que serviram de materiais às histórias míticas dos deuses e de heróis, no seu todo apenas tratado sob uma forma mais familiar. E refere a um período anterior à separação da família ariana a origem destes contos encontrados modernamente entre todos os ramos desta família.» Max Müller acha muito aceitáveis estes pontos de vista, e conclui que importa considerar «a imigração histórica, e muitíssimo posterior a das fábulas da Índia para a Europa, facto que as demonstrações de Benfey impõem com a necessidade da evidência. Abstraindo-se de tudo quanto foi visivelmente importado, nos tempos históricos, da Índia pela Europa, e por camadas sucessivas; do sânscrito ao pélvi, ao árabe, ao grego, ao hebreu, ao latim, etc., ainda fica um resíduo considerável das tradições populares, que exige uma explicação diferente. Os dados de Benfey, a meu ver, são irrefragáveis, mas conciliam-se com os resultados estabelecidos por Hahn.» (Nouvelles études de mythol., p.31.)

42O conhecimento dos grandes monumentos poéticos e religiosos do Veda e do Avesta trouxe à ciência elementos para deduzir as concepções primitivas que esses livros sistematizaram, como o estudo filológico da Ilíada de Homero e da Teogonia de Hesíodo, veio desde Schelling a reconhecer que a mitologia dos Gregos não nasceu desses poemas, que pelo prevalecimento dos mitos sistematizados influíram no abandono dos mitos populares à sua espontaneidade. Esse fundo acha-se hoje determinado pela exegese desses mitos védicos, avésticos e helénicos; resume o problema lucidamente Max Müller:

43«Dois assuntos foram de um interesse permanente para a poesia védica: 1.° O raiar do Sol ou o triunfo quotidiano da Luz sobre a Treva; e o triunfo anual da Primavera sob o Inverno. 2.° A Tempestade ou o triunfo de um deus luminoso sobre as nuvens negras, a empresa em que se libertavam as águas fertilizantes da prisão em que elas parecem esmorecer durante a estação das calmas. O protagonista de um destes dramas é Agni, quanto à luz solar; o outro é Indra, como o campeão do Céu azul.

44«Estes dois combates, temas permanentes da poesia védica, são muitas vezes tão misturados, enfeitados de metáforas e perfeitamente idênticos, que é difícil saber, em qual deles pensava o poeta, a que guerreiro solar e luminoso dirigia o seu Cântico de vitória. Daqui provieram as duas escolas de interpretação, uma solar, outra meteorológica, que se esforçavam de aplicar os seus princípios aos hinos da Rig Veda, ou a um grande número de episódios da mitologia ariana. Quanto a mim, considerei sempre a fraseologia solar e vernal como a mais importante e a mais primitiva da evolução mítica, pela razão que os mitos solares e vernais compreendem os fenómenos que são de recorrência regular, e portanto de natureza a deixarem no espírito uma impressão durável.» (Ib., pág. 104). E mostrando como o mito do Fogo, estudado fundamentalmente por Kuhn, está incluso no mesmo drama, termina pela conclusão de Senart: «A luta da Luz contra a Treva entende-se também da luta da Manhã contra a Noite, como a do Sol contra a Tempestade; é o laço que aproxima o herói solar a Agni e manifesta-se com evidência.» (Legenda de Buda, p. 283.) Do drama da aparição da Aurora e do Sol que a segue, antes de se representar nos mitos védicos, já estava esboçado na significação dos seus nomes: «Aqui, não é somente o deus do fogo e do sacrifício, é também o fulgor do Relâmpago, o esplendor da Aurora, a radiante luz do Sol meridiano e do Sol do Ocaso. Ushas védica, a que brilha, identifica-se com a Aurora; quem pode ser o seu amante senão algum fenómeno celeste em estreita relação com ela? E pois que a luz que segue a Aurora se chama Hélios ou Hiperíon, não é preciso grande sabença de grego para compreender que tanto Hiperíon como Hélios designam um personagem solar.» (Max Müller, op. cit., p.300.)

45Este quadro definido dos fenómenos solares e meteorológicos, é que faz compreender a limitação dos temas míticos, o que levou Gaston Paris a entender que os contos, separados de seus episódios e combinações variadíssimas, são no fundo em número determinado. Mitos, Contos, Religiões, Literaturas, nascem do fenómeno psicológico de uma representação subjectiva do espectáculo do drama universal identicamente em todas as latitudes e em todas as idades: o Dia, a Noite, a Aurora, o Sol, o Céu e as Nuvens, a Luz e as Trevas, os Ventos e as Tempestades; o estudo da novelística comparada conduz pela unificação dos temas comuns das raças ao conhecimento das concepções primitivas da humanidade; o que o espírito crítico reconhece nas reminiscências da infância levara à conclusão sublime de Goethe, de o homem se reconhecer na humanidade.

46Na sua Dissertação sobre os Contos de Fadas, o erudito Walkenaer assina-lhes um fundo histórico representado nas tradições populares europeias: «Depois do grande abalo, que deixara no mundo o vácuo causado pela queda do Império Romano, os povos da Germânia e da Cítria europeia precipitaram-se sobre o grande colosso derrubado.

47«Entre as tribos nómadas do Norte de Ásia, as conhecidas sob o nome geral de Tártaros, não podendo ser retidas, saíram dos seus desertos, e não cessaram, durante muitos séculos da Idade Média, de atacar os estados mais poderosos que acabaram por conquistar. Sob o comando de Gengiscão e de Tamerlão, fundaram os mais vastos impérios que se viram. Grandes carnificinas, crueldades inauditas tornaram memoráveis estas prodigiosas revoluções. Os Tártaros, para quem a Ásia já não era bastante, penetraram nas partes orientais da Europa, e fundaram a Rússia, na antiga Dácia e na Panónia, novos estados; daí fizeram incursão na Alemanha, Itália e França. Por toda a parte espalharam o medo e um terror geral. Os mais antigos e os mais cruéis destes devastadores tomaram-se os mais célebres, e seus nomes serviram para designar todos os outros. Deste modo se reuniram os nomes dos antigos Hunos e de ferozes Oigour, para designar os Magiares, tribo tártara, vinda das bandas do Volga, que se assentou mais no interior da Europa. Na Dácia e na Panónia chamaram-lhes então Honni-Gouris e à sua terra Honni-Gouria; daqui vem o nome de Húngaros e Hungria. Estes Hunni-Gouris, Oigours, são os Ogres terríveis dos Contos de Fadas, os entes ferozes que devoram crianças e gostam de carne humana tenra e saborosa.» Os Ogres têm sempre uma grande soberania como de raça vencedora, o que explica que muitas casas nobres fundavam suas genealogias em uma Ogresse, como a Casa de Lusignan, em Meluzioa, a Casa de Croy, Salin, Bassonpierre e Argangor, ou o solar de Haro na Biscaia e dos Marinhos em Portugal. Serão desta origem os Courrils, os diabos malignos que dançam, segundo a superstição das costas de Finisterra, a que Leroux de Lincy dá as formas de Gourils, Gories e Crious (Livre des légendes, p. 167) e que na tradição de Biscaia era os Coouro, e escoouradas, as mulheres que dormiam com esses diabos malignos ou Coouros, e carolas as danças desses Courils. Nos Contos de Fadas figura também o Lobo, não com o carácter das lutas burguesas figuradas no Roman du Renard, mas com o tipo sanguinário do grande facínora, o Wargus, que se tornou o Lobisomem, em que a superstição popular figura a personalidade germânica do expalso da Arimânia como um lobo errante e nocturno, contra o qual se podia atirar impunemente. Na tradição portuguesa o Lobisomem só podia voltar à sua forma humana depois de ser ferido. No Conto do Petit chaperon rouge é o lobo que figura na acção; na Cendrillon é o símbolo jurídico do sapatinho, que aparece nos costumes germânicos do casamento. Os Contos de Fadas relatam vagamente grandes fomes, que obrigavam os pais a abandonar os filhos na floresta; a antropofagia aparece figurada na raça dos Ogres, sendo hoje o vago Papão das crianças. O mundo feudal acha-se ali representado na sua crueza, em que o marido sacrifica à sua brutalidade a esposa, que tudo sofre submissa, como no conto de Griselidis; o pai deseja a própria filha, que se defende com subterfúgios, como no conto de Peu d’âne.

48Na organização social da Idade Média a vida confinada dos Pagi, povoações rurais, mantinha as velhas tradições que a Igreja combatia com o nome de Paganismo. Nessa estabilidade dos Pagi sincretizavam-se os restos dos cultos druídicos com elementos do politeísmo romano, com práticas do culto odínico germânico. A Igreja combatendo essas vetustas tradições, tentando adaptá-las ou opondo-lhes outras, actuava em um incessante sincretismo. Observou Darmesteter: «Onde quer que o cristianismo achou acesso, por via dos seus missionários, dos mosteiros ou da sua eclesiola estabelecida, pelas escolas, sermões, lendas escritas, fez-se veículo das ideias clássicas que penetraram no Folclore popular.» Exerceu o cristianismo na Europa uma acção semelhante à do budismo na Ásia, tornando o conto e os exemplos como meio de propagar as doutrinas religiosas abstractas.

49«O fundo da mitologia ariana assenta sobre a luta permanente das Trevas com a Luz. Trevas que sem cessar fazem entrar o mundo no nada; Luz que sem cessar o faz ressurgir.» (Darmesteter, Etud. orient., p.137.)

50«O mundo renasce sob os nossos olhos de três maneiras, em três circunstâncias: Ao sair do Inverno, – da Noite e da Tempestade.» (Ib., p.138.)

O Inverno:A Serpente que prende as Águas congelando-as, como um Cinto que oprime e abafa a Natureza. – Das Águas nasce a faísca do Raio, que solta as Águas na torrente. O Fogo celeste de Agni é o Deus Menino, o Salvador; renasce a Natureza na florescência e alegria, em que Agni é a Esposa.

A Noite: é a Caverna onde se oculta o Dragão (a Treva, o Lobo que assalta, a Velha, que ilude a Menina (a Aurora) que o Sol persegue, como sua Esposa. – O Sol no Ocaso é o Cavaleiro, que morre prematuramente, e que procura as Águas para a revivescência.

A Tempestade: A Nuvem negra representa o Baixel, que paira no Dilúvio das Águas; dela sai o Raio (a pomba) a cima já descoberta do decrescente Dilúvio.

A Nuvem: a Floresta (Vana), – a Árvore celeste. O Caçador selvagem, Wotan – o Furacão, urra e impera na tempestade, torna-se o Deus das Batalhas; é num Cavalo branco que passa nos ares e atravessa os mares. – Transformado pelo Cristianismo em Arcanjo S. Miguel, e em São Martinho, em mil anos de evolução tradicional, volta outra vez à sua origem popular do Caçador feroz.

51A relação tão profundamente apontada por Aristóteles entre a Filosofia e a Filomitia, pelos modernos estudos da importância das Tradições poéticas, levaram à conclusão sintética, tão bem formulada por Darmesteter: «A Filosofia constrói os seus primeiros sistemas em volta das velhas fórmulas incompreendidas, que ela julgou ter criado, e que nasceram não de silogismos, mas de sensações, não de reflexão lógica mas do agrupamento de imagens que faz os Mitos.» (Etud. orient., p. 136.)

  • 26 De ressurrect. carnis, cap.xii.

52A ideia mítica fundamental da comparação e analogia dos fenómenos da natureza com a vida do homem, aparece com intuito teológico nos primeiros séculos do cristianismo. Minutius Felix exclama: «Vede como a natureza inteira para nos consolar, parece ocupar-se da ressurreição futura, e produz diante de nós as imagens dela. O Sol põe-se e levanta-se, os astros fogem e tornam, as flores morrem e renascem, as árvores envelhecem e revestem-se de folhas novas, as sementes corrompem-se para reviverem. Também o corpo no túmulo, como a árvore no Inverno, oculta um princípio de vida sob uma aparência enganosa de morte. O corpo tem a sua primavera; é preciso saber esperá-la.» A concepção mítica do homem primitivo vendo os fenómenos físicos através da sua subjectividade, persiste com um novo sentido moral de alegoria teológico-metafísica. Tertuliano desenvolve estes mitos indo-europeus em considerações abstractas: «Eu lanço os olhos sobre as manifestações do poder divino: o dia morre para dar lugar à noite, e sepulta-se por toda a parte nas trevas. O ornamento do universo oculta-se sob os funéreos véus: tudo é sombrio, silencioso, consternado; por toda a parte a interrupção dos trabalhos! A natureza enlutou-se para chorar a perda da luz... Mas eis que ela revive para todo o universo, com a sua magnificência e com a sua pompa nupcial, sempre a mesma, sempre inteira, imolando a morte, isto é, a noite, rasgando a sua mortalha, isto é, as trevas, e sobrevivendo a ela, até que a noite volte outra vez e traga consigo os lúgubres aprestos. Então acendem-se as estrelas, que a claridade da manhã extinguira. Os planetas, um momento exilados pelo dia, são trazidos em triunfo... Sobre a Terra, a mesma lei que no céu; depois, de terem sido fanadas, as flores reaparecem com suas cores, os campos cobrem-se uma seguna vez de verdura. O que é, pois, esta perpétua revolução da natureza? Um testemunho da ressurreição dos mortos.»26

53Podem-se aproximar desta análogas passagens dos Vedas; então se notará que a concepção dos fenómenos é a mesma, havendo apenas uma interpretação alegórica sobre a impressão subjectiva. Nos espíritos mais elevados, a imagem poética incide inconscientemente sobre esta mesma ordem de comparações, tendo já perdido o carácter de realidade mítica; em Metastásio, o fino poeta cesário do século XVIII, lê-se

Primavera, giuventu dell’anno,
Giuventu, primavera della vita.

54Se nos espíritos cultos através dos dogmas religiosos e das idealizações artísticas se não perdeu o tipo mítico, com mais razão deve ele persistir entre as camadas populares.

  • 27 As Civilizações Primitivas, t.i, p.391.
  • 28 As Civilizações Primitivas, t.i, p.389.
  • 29 Idem, ibidem, p.397.
  • 30 Ibid., p.401.

55Nas locuções vulgares existem elementos dos mitos primitivos, cuja importância só se nos revela pelo processo comparativo. A Aurora é representada como uma Donzela engolida por um Dragão, ou a Noite, como se observa nos mitos de Andrómeda, de Hesíone, de Santa Margarida, do qual vêm a ser libertadas por um herói, ou elas mesmas é que rasgam o ventre do monstro. Tylor diz que se reconhece no conto do Petit chaperon rouge o mito do Sol crescente e do Sol no ocaso27, isto é, da Aurora matutina e da Aurora vespertina. Na linguagem popular diz-se o romper da Aurora, e de facto o rompimento deriva de uma concepção mítica primitiva; diz Tylor: «Os cristãos representavam voluntariamente Hades como um monstro que engolia os homens na morte. Tomemos exemplos pertencentes a diversos períodos: o Evangelho apócrifo de Nicodemo, na narrativa da descida aos Infernos, faz falar Hades como uma pessoa, queixando-se de dores no ventre quando o Salvador se prepara para descer e dar a liberdade aos santos retidos prisioneiros desde o começo do mundo. Na Idade Média, quando se queria pintar esta libertação, chamava-se-lhe o rasgamento do Inferno…28» Esta prisão das trevas, ou a noite, é o tema mítico conservado na locução do romper da Aurora, a qual se completa por outro vestígio do mesmo mito na locução à boca da Noite. Aqui o sentido preciso é do começo das trevas, que, como o dragão, abre a boca para engolir a donzela; sobre este ponto diz Tylor: «Por toda a parte onde a Noite e Hades se personificam em um mito, pode esperar-se o encontrar concepções tais, como aquela que exprime a palavra sânscrita que significa a noite, rajanimukha, isto é, a boca da noite. Também os Escandinavos falam de Hell, a deusa da morte, que abre a garganta como faz seu irmão Fenrir, o lobo devorante da Lua; e uma velha poesia alemã representa-nos o abismo de Hell, que bocejando se abre do céu a terra.29» Temos ainda uma outra locução, o olho do Sol, para significar a acção intensa do seu calor ou luz; Tylor acha esta metáfora solar em povos selvagens, Mata-ari (o olho do dia) em Sumatra e Java, e Maso-Andro, com o mesmo sentido em Madagáscar; na Nova Zelândia o mito torna-se completo, sendo o Sol o olho de Mani, e entre os Árias é Chakshuh Mitrasya, o olho de Mitra, ou o olho de Júpiter, como lhe chamavam os antigos Romanos, como o refere Macróbio30. Se a linguagem vulgar conserva esta impressão indelével dos mitos primitivos mais característicos dos povos indo-europeus, com mais razão devem eles persistir nas narrativas dramáticas ou novelescas em que esses mitos se desdobraram.

  • 31 Gubernatis, Myth. zoologique, t.i, p.131.
  • 32 Brueyre, Contes populaires de la Grande Bretagne, p.184.
  • 33 Brueyre, ibidem, p.28.
  • 34 Ibidem, p.139.
  • 35 Ibidem, p.125.
  • 36 Violier des histoires romaines, p.205.

56Os fenómenos siderais e atmosféricos foram personificados, identificados com a figura e hábitos morais do homem; é este um dos caracteres mais fundamentais do politeísmo. Nos contos populares que pertencerem às raças que se elevaram ao politeísmo, devem persistir estas concepções míticas, muitas vezes já não compreendidas por causa da substituição de um mais adiantado estado mental. Os contos de Psique, de Crescência, de Genoveva, da Imperatriz Porcina, de Merhuma (do Tuti-Nane, 1, 7), de Cendrillon, derivam dos mitos da Aurora perseguida ou libertadora, tal como aparece nos hinos dos Vedas31. O Sol seguindo a Aurora, personifica-se no mito de Eros, no esposo de Melusina, de Hélias, do Cavaleiro do Cisne, e no esposo de Eurídice32. Já vimos atrás como se personificava a Noite, no lobo que devora, na velha que esconde a donzela, ou a transforma e se torna negra, como no conto das Três Cidras do Amor. O vento acha-se mitificado nas Botas de Sete Léguas, comum a todos os povos áricos33; a nuvem é a toalha que se estende e dá sempre que comer com abundância, a qual nos Vedas é também representada pela vaca, que ainda aparece nos contos populares34. Muitas vezes, os contos derivam de uma mitificação espontânea como se vê pelas locuções populares, outras vezes são o efeito de uma decadência de mitos sistematizados; assim a sala proibida do conto do Barbe-Bleu é considerada como uma obliteração do tesouro de Ixíon35; o roubo dos bois por Petit Poucet aproxima-o do mito de Hermes; a guarda do boi Cardil ou boi Bragado é o mito de Mercúrio e Argos36. Poderíamos ampliar as referências a sistemas míticos da Antiguidade que ainda subsistem nos contos populares, mas basta-nos deduzir da lei da sua formação o limite preciso dos temas novelescos. Gaston Paris é de opinião que os temas tradicionais se fixam em um determinado número de tipos; é o que se deduz dos dois sistemas politeístas, o antropomórfico e antropopático. Indicaremos esses tipos fundamentais, aproximando-os das personificações dos contos:

57O Sol é o príncipe encantado, o herói que salva, o amante que perde a forma horrenda, é o doente que morre prematuramente e que renasce, é o cavaleiro que mata o dragão, é o tesouro.

58A Aurora é a criança, a donzela, a recém-nascida, a filha da feiticeira negra, velha e feia; é a Psique que tem o marido sobrenatural; é a Melusina, ou a esposa sobrenatural que abandona o marido, é a Penélope ou esposa fiel que recupera o seu marido.

59A Noite é a velha feia e ruim, a ogresse, a madrasta que maltrata a enteada, o lobo devorador, o saco em que é furtada a menina, ou a cova em que estão enterrados os príncipes.

60Os Dias são os filhos desejados que tomam formas monstruosas, as vítimas de um voto, as crianças abandonadas, ou que têm um nascimento maravilhoso.

61Os Crespúsculosmatutino e vespertino são os dois irmãos gémeos; são os pequenos maltratados; são o irmão que mata o irmão ou o salva.

62Além destes tipos, nos costumes populares de toda a Europa conservam-se as cerimónias dramáticas da entrada do Verão e saída do Inverno, o rapto da Primavera, nas lendas do Caçador feroz, na morte do Dragão, na libertação da donzela, como Andrómeda, na revivescência do cavaleiro como Artur, Barba-Roxa ou Dom Sebastião. Nas festas religiosas é que se conserva nas formas cultuais o mito do nascimento do Fogo ou o menino, o medianeiro ou o salvador. Assim dos dois grupos de fenómenos solares e siderais se deduzem os tipos ou temas míticos que mais persistem nos contos populares, sendo essa também uma das causas da sua universalidade. Uma boa classificação novelística é, portanto, uma síntese baseada sobre estes dados concretos. Os contos populares têm sido compilados sem nexo, por causa da sua extraordinária complexidade, apesar de terem sido já reconhecidos os episódios mais frequentes em todos eles. Esta deficiência tem obstado à sua apreciação. Von Hahn apresentou uma classificação descritiva artificial, que só serve para tornar monótonos os contos coligidos segundo esse agrupamento exterior. Essa classificação foi adoptada pelo Folk-Tale Commitee de Londres; depois desta, conhece-se a classificação de Baring-Gould, com o mesmo espírito, variando apenas pelo arbítrio. A única classificação racional dos contos é a que se funda nos temas tradicionais derivados dos tipos míticos, como acima indicamos; para realizar este trabalho é preciso conhecer a sucessão dos estados mentais da humanidade, as capacidades das raças, e só assim é que se verá como os mitos derivam já da comparação, como as fábulas do fetichismo, já da analogia, como nas personificações politeístas, já da plausibilidade, como nas épocas em que existe um certo grau de abstracção tendente para o monoteísmo, e em que o mito subsiste na forma da parábola, e em que a lenda se converte em história. Tylor define o valor desta sucessão mental: «Este desenvolvimento opera-se com tanta uniformidade, que se torna possível tratar o mito como uma produção orgânica da humanidade inteira, na qual as distinções de indivíduos, de nações e mesmo de raças, são subordinadas às qualidades universais da inteligência humana.» (Op. cit., 1, 481.)

63I. Concepções fetichistas (peculiares aos povos selvagens e persistentes nas civilizações cuchitas e mongoloides):

a) Comparação por diferença .... Fábulas

Lapidários — Viridiários — Bestiários — Astrologia, Animismo ou transição mítica.

b) Persistência desta concepção com intuito moral e forma literária...............Apólogos.

c) Dissolução popular em locuções proverbiais e referências ou ditos alusivos.....Anexins.

64II. Concepções politeístas (das Sociedades rudimentares, aparecendo desenvolvidas nas civilizações semíticas e áricas):

Do Sol, da Aurora e da
Noite.

a) Mitos antropomórficos...................Contos

Do Céu das Nuvens e das
Estrelas.

Comparação por analogia:

Dos Dias e dos Crepúsculos.

1.a – Doméstica (Enigmas.)

2.a – Nacional (Epopeias.)

3. a – Sacerdotal (Teogonias.)

O Sol hibernal e estival, ou o jovem herói que morre e ressuscita. – (Aquiles, Sigurd, Cristo.)

b) Mitos antropopáticos..............Epopeias

A Primavera, ou a donzela raptada. – (Sita, Helena.)

65III. Concepções monoteístas (Das sociedades superiores, em que preponderam ideias abstractas):

a) Obliteração dos temas míticos
entre o povo..................................Casos

O Príncipe, A Donzela, A Velha, O Tesouro, O Lobo, O Ogre.

b) Renovação pelas formas literárias........................................Novelas e Lendas.

c) Mitificação racional na comparação por plausibilidade..................Exemplos e Parábolas.

  • 37 O Fabliau intitula-se: De la vieille que graissa la main du Chevalier (Rec. de Fabliaux, p.142). Ac (...)
  • 38 Publicado por Bernoni, Veneza, 1875, ap., Gubernatis, Mythologie des plantes, t. i. p.17. Este anex (...)
  • 39 Este provérbio pertence ao século xv; nasceu de uma anedota popular. Conta Estanislau Osio, que o g (...)

66Quando começou o estudo dos contos, por Huet, Sylvestre de Sacy e Loiseleur des Longchamps, consideraram-se geralmente de proveniência oriental; Benfey e Max Müller fixaram no Pantchatantra este veículo de transmissão para o Oriente e Ocidente, e os contos foram considerados de origem árica. Chegados a este ponto, era pela unidade dos mitos áricos nos povos indo-europeus, gregos, romanos, celtas, teutónios e eslavos, que se explicava a similaridade dos contos populares entre as várias nações da Europa. Os contos eram considerados como a decadência de mitos que perderam o sentido religioso e sistematicamente especulativo, tornando-se lendas persistentes na fantasia popular. Assim para interpretarem os contos muitos filólogos aproximam-nos imediatamente dos mitos áricos, ou agrupam em série todas as versões conhecidas do mesmo conto para por uma simplificação dos episódios acidentais determinarem a lenda primitiva que pode mais facilmente relacionar-se com o mito. São errados estes dois processos; existiram outras civilizações além da árica, que fizeram contos sem dependência de mitos, e por isso aproximá-los dos mitos védicos é forçá-los a analogias fortuitas; quando porém o mito se dissolveu em lenda, foi por efeito de uma revolução moral, a ruína de um culto, e portanto o mesmo mito dá lugar a muitas lendas simultâneas, sem tipo unitário. Pretender achar a lenda proveniente do mito pela comparação de muitos contos do mesmo tema, é um trabalho infrutífero que a nada conduz. O conto é uma mitificação da linguagem; nasce da palavra, do epíteto, da sinonímia, da homonímia, como Dafne, a aurora e o loureiro, e Birsa, a fortaleza e a pele de boi, sobre que se formou a lenda da edificação de Cartago. Depois de ter percorrido toda a sua evolução quer com sentido religioso, histórico ou moral, intuitos que influem nos acidentes dramáticos do seu tema e na particularidade ou universalidade da sua transmissão, o conto ou se torna um molde sobre que se adaptam novos episódios, ou acaba pela simples locução proverbial donde partira. Citaremos alguns exemplos portugueses; ainda hoje se diz untar as mãos como meio de conseguir mais facilmente o que se pretende, mas ninguém se lembra do conto da Idade Média donde esta locução deriva37; o anexim A fé é que nos salva, e não o pão da barca, ainda tem a forma de conto na Itália38; o mesmo com A fé do carvoeiro39.

  • 40 Ott. Muller, Hist. de la littérature grècque,ii, p.522.
  • 41 A Reforma, na Alemanha, também produziu o desenvolvimento escrito das Fábulas, como se vê pela cole (...)

67A passagem dos contos para a forma literária foi na Índia devida à propaganda búdica, cujas lendas morais foram coligidas no Pantchatantra; na Grécia os contos escreveram-se com intuito artístico, formando os Loci communes das escolas dos retóricos40, atingindo rapidamente a perfeição em Apuleio, e em Roma em Petrónio. O catolicismo procurando combater o politeísmo, no Ocidente serviu-se do processo do budismo, deu forma escrita aos contos nesses Exemplos dos pregadores medievais, e nas lendas hagiológicas como a de Barlaão e Josafat tirada do Lalita vistara41. Acidentes históricos provocaram o encontro das fontes tradicionais populares com as eruditas; tais foram as causas da decadência do politeísmo entre os povos indo-europeus, que abraçando o catolicismo nem por isso esqueceram os seus mitos nacionais, aceitando ao mesmo tempo a lição moral pregada nos Exemplos.

  • 42 Max Müller formou o esquema desta migração das Fábulas da Índia para a Europa.
  • 43 No segundo volume de esta colecção tratamos da literatura dos contos populares.

68A entrada dos Árabes na Europa fez com que se vulgarizasse a tradução do Pantchatantra, traduzindo-se do árabe para grego por Simeo Seth, para latim por João de Cápua, para castelhano com o título de Calila e Dimna, e na época da Renascença para italiano, francês, inglês42. Com a primeira Renascença, em Boccaccio, Sachetti, Gower e Chaucer, o conto recebe a forma literária que os humanistas cultivaram, já com o espírito sensual e sarcástico da época, já com o pedantismo moral que lhes fez esquecer a graça e ingenuidade popular; é incalculável a soma de colecções de Novelas sobretudo nas grandes literaturas românicas, especialmente a italiana. Esta actividade não deixou de influir na revivescência popular e a necessidade de preencher um certo número de contos de colecções artificiais, como o Decâmeron, o Pentâmeron e Heptâmeron, obrigava a recorrer às narrativas populares para suprirem na falta de invenção43. Ainda sob a forma quase que exclusivamente literária da Novela, é aonde os costumes antigos se acham mais pitorescamente esboçados. Os escritores foram-se aproximando conscientemente da tradição do povo, como Pérrault, mas daí até possuírem essa mão casta para colher as flores da tradição, como o fez Grimm no começo do século xix, distava um espaço que só pôde ser transposto pela ciência, com os seus variados recursos da filologia comparada, da mitografia, da etnologia, que nos revelaram o critério que torna inteligível este antiquíssimo documento humano.

Novelística brasileira

69O ponto de vista antropológico e étnico da novelística popular, acha a sua plena comprovação em um país em que esses elementos orgânicos se contrapõem sem estarem ainda mutuamente integrados.

  • 44 Système de politique positive, t.iv, p.494.

70Parecerá à primeira vista estéril a investigação das tradições em uma recente nacionalidade como o Brasil; mas com a colonização deste importante país dá-se um fenómeno conjuntamente étnico e sociológico, que poremos em relevo. A primeira ocupação pelos Portugueses fez-se por um modo pacífico, com intuitos mercantis conciliados com a propaganda religiosa; a necessidade da cooperação agrícola obrigou ao aproveitamento de uma raça degradada, e nesta co-habitação permanente em um grande campo de exploração, o Português radicou a sua tenacidade colonial pela fusão ou mestiçagem com o elemento indígena e com o elemento negro. Este importante fenómeno histórico, donde derivam os novos caracteres de uma nacionalidade, distingue de um modo bem acentuado o sistema de colonização da América do Sul. Sobre este problema, escreve Augusto Comte, com surpreendente lucidez: «O modo próprio da colonização introduziu, entre o Norte e o Sul da América, uma diferença contínua, quanto às relações respectivas com as populações principais. Sistematizada pelo catolicismo e pela realeza, a transplantação ibérica conservou o conjunto dos antecedentes, e mesmo permitiu, como acabo de explicar, um melhor desenvolvimento dos caracteres essenciais.44» O Português não atacou as raças selvagens do Brasil, como o Anglo-saxão na América do Norte; não ocupou o novo continente por emigrações forçadas sob o impulso da revolta política e da dissidência religiosa; não viu no seu cooperador activo, o escravo negro, esse abismo inacessível da cor, e suscitado pela ambição pacífica do lucro, conservou instintivamente o conjunto dos antecedentes; esta circunstância facilitou o encontro das três raças produzindo-se gradativamente os caracteres essenciais para a formação de uma vigorosa nacionalidade. Durante a colonização portuguesa, não perdemos na transplantação as tradições poéticas da mãe-pátria, como se vê pelos Contos Populares do Brasil; pelo seu lado, as raças selvagens, guarani e tupi, mantiveram as suas tradições primitivas. Na língua portuguesa das províncias do Pará, Goiás e especialmente Mato Grosso, notou Couto de Magalhães vocábulos tupis e guaranis, frases, figuras, idiotismos e construções peculiares do tupi; as danças cantadas, como o Cateretê e Cururu vieram dos Tupis incorporar-se nos hábitos nacionais; em São Paulo, Minas, Paraná e Rio de Janeiro há canções em que se alternam versos portugueses e tupis; na vida doméstica entraram Contos e Lendas, como a história de Saci Sararé, Boitaitá e Curupira, e muitas fábulas foram coligidas do ditado de soldados indígenas servindo na guarnição de Rio de Janeiro. O elemento negro, escravo, trazido do foco africano procurou nas ficções do seu fetichismo, nessas fábulas espontâneas, a consolação de uma situação monstruosa que se prolongou abusivamente durante quatro séculos. Um dos caracteres essenciais da nova nacionalidade será evidentemente a reminiscência destas três tradições, na forma de Mitos, de Lendas ou de Contos, segundo o desenvolvimento social dessas três raças que se aproximaram.

  • 45 O Sr. Sant’ Anna Nery, no seu livro Folk-Lore Brésilien (p.4) apresenta-nos como contrafactor dos C (...)

71Coligir essas tradições no sincretismo actual em que se acham, determinar a intensidade de cada elemento étnico, é um processo de alta importância para avaliar como a par da assimilação orgânica se está elaborando a síntese afectiva, que individualiza e unifica uma nacionalidade em todas as manifestações da literatura e da arte. Foi sob este aspecto que ligámos uma singular importância aos Contos Populares do Brasil, coordenando-os etnologicamente, de preferência a qualquer disposição estética45.

72As três principais raças humanas, «as únicas cuja distinção é verdadeiramente positiva» como diz Comte, acharam-se em contacto no solo do Brasil; o branco, o amarelo e o negro aproximaram-se em condições diferentes, cada um com as suas qualidades antropológicas e psicológicas, em uma cooperação inconsciente. A conservação dos antecedentes de cada uma facilitando o estabelecimento de relações morais, como se vê pelo sincretismo das tradições, foi a base segura para o desenvolvimento da nova nacionalidade, e leva a prever-lhe um esplêndido e assombroso futuro. Analisemos os elementos que constituem a síntese afectiva da nacionalidade brasileira.

  • 46 Contos Populares do Brasil, n.° 31.

731. – Tradições de proveniência europeia. Os colonizadores portugueses do século xvi, conservando o conjunto dos seus antecedentes, transplantaram consigo um grande número de tradições europeias e persistências consuetudinárias, algumas actualmente obliteradas no velho mundo. Assim o rudimento dramático do Bumba meu boi, aparece proibido em um sermão do século vii: «Que ninguém se entregue às práticas ridículas ou criminosas das Calendas de Janeiro, tais como fingir velhas ou animais (aut cérvulos).» A parlenda infantil «Estava a moura em seu lugar,»46 ainda se conserva na sua forma antiga na tradição oral da Galiza, por onde se vê como foi modificada por uma homofonia na versão brasileira:

Estava a amôra en seu lugar,
e ven a mosca pra a picar.

74«A mosca n’amôra n’a silva, a silva n’o chan,

  • 47 Biblioteca de las Tradiciones populares espanolas, t. iv, pág. 123.

Chan, chan,
ten man.

Estaba a mosca no seu lugar,
e ven o gallo pra a pillar…
47

  • 48 Contos Tradicionais do Povo Português, t.ii. Introdução.

75Como se vê, a forma galega, que é muito extensa, conserva ainda o carácter de um jogo popular; e na brasileira, a amora converteu-se em moura, vestígio da sua proveniência e processo de adaptação. O romance à morte do príncipe D. Afonso (Cantos, n.° 19) é também um documento da vivacidade dos cantos transplantados com os colonizadores no século xvi. Os costumes domésticos têm impressa essa feição quinhentista; é nessas relações íntimas, que os contos se repetem, tais como foram recebidos da metrópole, e como passatempo, na vida isolada da província. No nosso estudo sobre A Literatura dos Contos Populares em Portugal48, investigamos a área de vulgarização novelesca no século xvi e xvii, e por ele se vê a abundância dos elementos que se transmitiram para o Brasil. Os novos emigrantes das várias províncias de Portugal e ilhas têm alimentado esse fundo tradicional europeu, segundo o costume meridional, expresso por Jean le Chapelain:

Usaiges est en Normandie
Qui herbergiez est, qu’il die
Fable ou chançon lie á l’hoste.

  • 49 Rodolfo Teófilo, História da Seca do Ceará, pág. 86.

76Gil Vicente, António Prestes e Camões aludem ao nosso costume popular de contar histórias que duram noites a dias, e patranhas de rir e folgar. Vemos isto, por exemplo, nos costumes do Ceará: «Em Setembro começam a desmanchar a mandioca, a fazer a farinhada. E que alegres dias e festivos serões na humilde casa de palha do pequeno lavrador! Parentes, amigos e vizinhos, no mais cordial adjutório, com ele arrancam, raspam, cevam a bendita raiz. Levam-na à prensa, à peneira, ao forno. Suor de escravo não vereis ali correr; é o trabalho livre e fecundo, amenizado pela saudosa modinha cearense ao tanger da viola, ou por intermináveis histórias de cobras e onças.»49 Em uma poesia de Juvenal Galeno, Saudades do Sertão, descreve-se também este viver doméstico, em que se repetem os contos:

Conta o moço uma façanha
Das vaquejadas do dia,
O velho recorda um
Caso
De quando se divertia;
A velha
conta uma história...
O vaqueiro uma vitória...
Cada qual tem sua glória.
Seu feito de bizarria.

77Em Portugal, a par da Modinha, como descreve Tolentino, usava-se também o Conto, que se foi tomando apanágio das crianças e da ingenuidade provincial; diz o poeta dos costumes burgueses do século XVIII:

  • 50 Obras, pág.262. Ed. Castro Irmão.

Contando histórias de fadas
Em horas que o pai não vem,
E co’as pernas encruzadas
Sentado ao pé do meu bem
Lhe dobo as alvas meadas.
50

  • 51 Óperas Portuguesas, t.i, pág.273.

78O carácter popular das obras de António José da Silva é uma prova da vitalidade das tradições do Brasil; porque sendo ele de uma família abastada, esse sentimento tradicional que introduzia nas criações literárias de uma época decaída, era a consequência do meio fecundo em que se desenvolvera. Na ópera Os Encantos de Medeia, alude a vários contos dos ciclos mais universalizados da Europa. «Arpia: Pois sabei que na quinta de Creúsa, debaixo da terra, está uma estrebaria, na qual está um burro que caga dinheiro. Sacatrapo: Eu ouvi falar nisso do burro caga dinheiro, que minha mãe o contava quando eu era pequeno; porém sempre tive isto por história. Arpia: Não te digo eu que todos têm notícia desse burro? – quando fores à empresa, te hei-de dar um capelo, que foi de minha avó, o qual quem o põe ninguém o vê, e pode ir por onde quiser, e entrar em toda parte sem ser visto; etc.»51; Quando António José se aproveitou destes elementos tradicionais ainda eles eram considerados como desprezíveis; depois a ciência determinou-lhes paradigmas universais, e daqui foi levada a interpretá-los como últimos e apagados vestígios de concepções, tais como mitos e lendas, já de proveniência de noções religiosas ou de reminiscências históricas. Hoje a tradição do burro mija dinheiro é conhecida na sua forma alemã coligida pelos irmãos Grimm no Kinder und Hausmãrchen, a por Bechstein, no Deutsche Mãrchenbuch; na sua forma norueguesa coligida por Asbjõmsen, no Norske Folke eventyr; na forma inglesa, coligida por Baring Gould, no apêndice do Folk Lore of the Nothern countier of England, aparece a mesma tradição nos Contos do Decan, coligidos por Miss Frere, nos contos calmucos, estonianos, e ainda em versão italiana e espanhola. Na colecção brasileira (n.° xli) o conto do Preguiçoso filia-se neste imenso ciclo tradicional ao qual se tem procurado a sua base na degeneração mítica.

79António José imita também as fórmulas populares da narrativa novelesca, como se vê na comédia Vida do Grande D. Quixote: «Sancho: Acerca disso contarei uma história que sucedeu não há vinte anos. Convidou um fidalgo do meu lugar, mui rico e principal, porque descendia do Neptuno do Rossio, que casou com Dona Rigueira das Fontainhas, que foi filha de D. Chafariz de Arroios, homem sobretrancão e seco, o qual se afogou em pouca água, por causa de um furto que lhe fizeram, de que se originou aquela célebre pendência das enxurradas, na qual se achou presente o senhor D. Quixote, que veio ferido em uma unha; não é verdade, senhor? D. Quixote: Acaba já com essa história antes que te faça calar... Sancho: Como vou contando, vai senão quando... Aonde ia eu, que já me esquece? Fidalga: Na pendência das enxurradas. Sancho: Ah, sim, lembre Deus em bem; este fidalgo, que eu conheço como às minhas mãos, porque da sua à minha casa não se metia mais que uma estrebaria, convidou, como vou dizendo, este fidalgo a um lavrador pobre, porém honrado, porque nunca pariu. D. Quixote: Acaba já com essa história. Sancho: Já vou acabando: chegado o tal lavrador a casa do fidalgo convidador, que Deus tenha a sua alma na glória, que já morreu, e por sinal dizem que tivera a morte de um anjo, mas eu me achei presente, que tinha ido não sei donde. D. Quixote: Por minha vida que acabes, senão te moerei os ossos. Sancho: Foi o caso: que estando os dois para sentar-se à mesa, o lavrador porfiava com o fidalgo que tomasse a cabeceira da mesa, o fidalgo porfiava também que a tomasse o lavrador; tem daqui, tem dali, até que enfadado o fidalgo disse ao lavrador: Assentai-vos, vilão ruim, aonde vos digo; porque onde quer que eu me assentar essa é a cabeceira da mesa.

  • 52 Óperas Portuguesas, t.i, pág.73.

Entrei por uma porta,
Saí por outra;
Manda El-Rei,
Que me contem outra.»52

80Este ditado novelesco ainda se repete na tradição actual do Brasil (vid. adiante, pág. 277); o tema do conto pertence ao ciclo das facécias mais vulgarizadas na Europa. António José, como Francisco Rodrigues Lobo no século xvii, chasqueia o ditado popular, cheio de vacilações e incongruências; por onde se vê que é errado o processo daqueles que ao coligirem os contos do povo atendem principalmente às formas dialectais, sacrificando o que é persistente, os temas tradicionais, ao modo acidental da sua narração. Convém separar o estudo da Novelística do da Dialectologia.

  • 53 Egger, Mem. de littérature ancienne, pág.290.
  • 54 «In qualche comune delia provinda di Siracusa corre la credenza che a Comarano presso Schoglitti, s (...)
  • 55 Chassang. Hist. du roman, pág.398.

81A universalidade de um certo número de contos entre as mais separadas raças e diferentes civilizações humanas, é o primeiro fenómeno que surpreende o crítico. Daqui a inferência da sua importância étnica e psicológica, como documento inconsciente de um período emocional da vida da humanidade. É, portanto, lógica a aproximação do Conto, tal como ele chegou até nós, dos Mitos mais gerais criados pela inteligência primitiva, e mesmo considerá-lo em grande parte como degenerescências desses mitos quando deixaram de ser compreendidos. Não é esta, porém, a nossa doutrina; porque a aproximação do conto pode fazer-se também da Lenda, estabelecendo-se uma relação íntima entre estes dois produtos da imaginação e das concepções subjectivas. O Conto é para nós um produto independente e simultâneo com a criação do Mito e da Lenda, apropriando-se dos elementos de cada uma dessas concepções, e conservando por isso na sua variedade umas vezes caracteres míticos, outras vezes caracteres lendários. É por uma tal relação que o conto se conserva com uma tenacíssima persistência, já entre as raças atrasadas e mesmo entre os indivíduos mais adaptados à concepção mítica, como as crianças, entre as pessoas em quem prepondera a memória histórica, como os velhos. A feição mítica dos contos reconhece-se em um determinado número de temas incidentais que se repetem entre todos os povos; tais são as botas de sete léguas, mitificação do vento; a toalha sempre com comer, que Brueyre interpreta como sendo a nuvem, os pomos do ouro, ou o Sol, a menina que bota pérolas quando fala, ou a Aurora, que é a gata borralheira no crepúsculo vespertino; alguns contos têm sido aproximados de mitos definidos, tais como o conto de João Feijão (Tom Puce) do mito astronómico da Grande Ursa e dos bois por Hermes, o da Cendrillon do mito de Prosérpina, a sala proibida do Barbe-Bleu, do mito do tesouro de Ixíon, as botas de sete léguas com as sandálias de ouro de Minerva, na Odisseia. Estas aproximações podem ser verdadeiras, mas é preciso que se não submeta tudo ao exclusivo ponto de vista mítico. Segundo a aproximação do tipo lendar, o conto apresenta outros caracteres: conserva o seu tema, modificando as circunstâncias de pessoas e lugares. Exemplifiquemos: Conta-se em Lisboa que Diogo Alves, assassino célebre, vivia nos Arcos das Águas Livres, roubando os visitantes daquele Aqueduto, e precipitando-os daquela enorme altura; uma vez tomara uma criança nos braços para a precipitar, mas a criança vendo-se ao colo do assassino sorriu-se na sua candura, e o malvado não teve então coragem para realizar o seu crime. Esta tradição local acha-se contada por Heródoto (Hist., liv. v, cap. xcvii) em situação diversa, mas com o tema fundamental da criança que sorri para os seus assassinos e assim escapa.53 Às vezes o conto, conforme prevalece o carácter lendário, persiste pela sua aplicação moral; nos Açores existe o conto, de que há no céu um queijo de ouro, que ainda está por partir, e só será encetado por aquele que sendo casado nunca se tenha arrependido. Esta tradição aparece com o mesmo intuito na Sicília, dando lugar a um provérbio54. Se o conto de Psique deriva do mito da Aurora, o conto de Rodópis, já citado por Estrabão (xxi, 808) e por Eliano (Hist. Várias, xiii, 33) persistiu à custa das suas relações lendárias55.

  • 56 Ott. Müller, Hist. de la littérature grècque, t.ii, pág.522.
  • 57 Tylor, La civilisation primitive, t.i, pág.403.

82Desta dupla relação do Conto com o Mito e a Lenda, assim ele se confina exclusivamente entre o povo, até o irem lá descobrir Perrault com um intuito artístico, e os Grimm com o seu espírito científico; ou o conto se desenvolve literariamente, como vemos na Grécia com os Loci communes56 e com o pensamento filosófico, como o conto das Parcas e da Vida Humana57 Também nos escritores mais individualistas aparecem estas reminiscências novelescas, cujas raízes se vão encontrar vivazes na tradição popular: Voltaire, descrevendo o Anjo que vive em companhia de Zadig, elabora um tema anterior que se acha no inglês por Thomas Parnell, e já no século xiv em uma homilia de Alberto de Pádua, indo remontar na forma escrita até aos fabliaux, como afirma Littré. É já possível coordenar todos estes elementos da mentalidade subjectiva em uma relação psicológica, de forma que se compreendam como concepções de uma síntese espontânea. Vico foi o primeiro que estudou o ponto de partida de todas estas concepções na sua forma simples e imediata de Tropos, Quase todas as palavras na sua significação não são mais do que abreviações de Tropos; assim o Norte (north) significa o lado da chuva; Sul, batido do sol; Leste, brilhar, arder; Oeste, da casa. O Tropo desenvolvendo-se sob o ponto de vista da personificação antropomórfica, aparece-nos na eflorescência do Mito. Assim nas concepções do Egipto, o Sol é o menino Horus, as trevas são personificadas em Set, contra as quais luta Horus, para vingar seu pai Osíris ou o Sol radiante. Nos mitos védicos, a Aurora, ou o crepúsculo matutino é personificada na donzela, em Ushas; o Firmamento é o pai, Varuna ou Urano. A afirmação de que os temas míticos têm uma área limitada só se pode aceitar enquanto ao seu desenvolvimento dentro de certos sistemas religiosos; assim os fenómenos solares personificados deram lugar à seguinte categoria de mitos: os fenómenos diários da Aurora, do Sol e da Noite (personificados na donzela, a criança orfã, a recém-nascida, a enteada bonita, a rapariga feia temporariamente; no príncipe, no amante, no encantado que aparece; na velha, na madrasta ruim, na bruxa). Os fenómenos solares anuais, da Primavera, do Verão, do Inverno, foram mitificados antropopaticamente, sendo este em geral o fundador das grandes epopeias. Esta forma orgânica das literaturas é efectivamente o desenvolvimento de temas míticos, que às vezes subsistem entre o povo na forma de contos, mas deveram a sua activa elaboração e interesse às relações lendárias de que se aproveitaram.

  • 58 Hist. de la littérature grècque, t.i, pág.19.

83Vimos o que era o Mito; resta-nos definir a Lenda: esta criação é a narração de um facto não pelo que ele teve de realidade, mas segundo a impressão subjectiva que produziu. O poder da formação lendária é característico da nossa raça árica, que o desenvolveu até chegar à veracidade histórica; diz Emilio Burnouf: «Todos os povos da raça árica, no Oriente e no Ocidente, remontam a sua origem a personificações heroicas que nunca existiram, e a estes seres ideais que são deuses ou símbolos, mas não pessoas reais58». As lendas têm também formas definidas na sua divergência da realidade: os Epónimos, como Mena, Manu, Rómulo, Hellen, Dorus, representam uma raça ou uma civilização; na Toponímia, os lugares são representados como individualidades históricas, como se vê nos antigos livros hebraicos, onde o nome de Sem significa montanha, Héber, o da margem de lá, ou da outra banda do rio, Faleg, a divisão. À elaboração dos elementos da lenda poderia também dar-se o nome de mitificação por plausibilidade, como indica Tylor.

84Assim como se chegou a ler a imagem emblemática dos brasões, também a linguagem mítica tem as suas formas gradativas, podendo coordenar-se na sua dependência psicológica através dos mais inconscientes sincretismos.

  • 59 Système de politique positive, t.iv, pág.520.

852. – Tradições de proveniência africana. Na época em que os Portugueses colonizaram o Brasil, a raça negra da África entrava no concurso da civilização moderna pela forma afrontosa da escravidão; esta circunstância destoando completamente do espírito da corrente histórica, influiu na degradação simultânea do negro e do branco, deixando ao futuro que hoje é o nosso presente, um dos mais difíceis problemas sociais a resolver. Acabara a escravatura antiga, porque esta situação social era emergente do estado de guerra; entrando-se no regime industrial e pacífico, determinado pelas grandes navegações, a escravidão tomou uma nova forma, a exploração criminosa de uma raça inferior, degradada em vez de ser tomada como cooperadora da actividade dos Europeus. Foi preciso que o senso moral se elevasse para que a escravidão do negro se considerasse uma afronta da humanidade, lançando Filanghieri o primeiro brado contra essa iniquidade. Comte julgou com bastante clareza esta situação social que explorava o negro como escravo: «o destino normal da escravidão não convém senão à submissão do trabalhador ao guerreiro. Enquanto a instituição antiga secundou o desenvolvimento respectivo do senhor e do servo aproximando-os, a monstruosidade moderna degrada um e outro separando-os.»59 Nos anexins populares conhece-se o instinto de aversão e crueldade da população branca do Brasil para com o negro:

Negro é toco.
Quem não lhe atira é louco.
Negro é vulto,
Quando não pede, furta.
Negro quando não canta, assobia;
Deitado é laje;
Sentado é um toco,
Correndo é um porco.
O preto tem catinga,
Tem semelhança com o Diabo;
Tem o pé de bicho,
Unha de caça
E calcanhar rachado;
Quando se chama, resmunga,
Se resmunga, leva pau.
(Rio de Janeiro)

  • 60 O Abolicionismo, pág.20.
  • 61 Ibid., pág.21.
  • 62 Ibid., pág.108.
  • 63 Ibid., pág.209.
  • 64 O Abolicionismo, pág.22.
  • 65 Syst. de politique positive, t.ii, pág.461.–Virey, na Histoire générale du genre humain, descreve m (...)
  • 66 O Abolicionismo, págs. 50 e 136seg.
  • 67 A. F. Nogueira, A Raça Negra, pág.289.

86Apesar deste barbarismo no branco, a raça negra deve considerar-se como um elemento cooperador da civilização brasileira. Diz Joaquim Nabuco: «Para nós a raça negra é um elemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro.»60 O mesmo escritor continua com a autoridade da sua competência: «a parte da população nacional que descende de escravos é pelo menos tão numerosa como a parte que descende de senhores, isto quer dizer, que a raça negra nos deu um povo.»61 Ainda por este tempo a população negra elevava-se ao número de milhão e meio de almas62; de1831 a 1852 o tráfico transportou da África para a senzalas do Brasil um milhão de negros63, calculando a cifra anual em cinquenta mil. Era antropologicamente impossível, que este elemento não actuasse sobre a população branca, apesar do seu afastamento cruel. As músicas e danças populares, como as sambas, xibas, batuques e candomblés, o vapatá e o caruru, são a prova da influência étnica do negro, no Brasil. Como é que as tradições populares e domésticas escapariam à influência dessa raça no seu espontâneo fetichismo! Se o branco foi severo no seu afastamento do escravo negro, este obedeceu à sua tendência afectiva, ligou-se à nova nacionalidade de que o fizeram cooperador. Sobre este ponto escreve Joaquim Nabuco: «A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor, falando colectivamente, nem criou entre as duas raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos.»64 Como os factos particulares confirmam as grandes leis naturais: a raça negra é essencialmente afectiva, e é este o carácter com que tem de ser trazida à cooperação com as raças superiores da história. Augusto Comte expôs este grande princípio sociológico, confirmado pelos antropologistas: «Pode-se já reconhecer que os negros são tão superiores aos brancos pelo sentimento como abaixo destes pela inteligência.»65 No desenvolvimento da nacionalidade brasileira confirma-se este facto da cooperação sentimental; diz Joaquim Nabuco: «Aliados de coração dos Brasileiros, os escravos esperaram e saudaram a Independência como o primeiro passo para a sua alforria, como uma promessa tácita de liberdade, que não tardaria a ser cumprida.»66 A relação étnica do negro com a pátria brasileira é vastíssima, como se vê pela abundância de fábulas, colhidas da tradição oral. Na Grécia a fábula era também considerada como proveniente de uma civilização negróide, donde a sua designação de fábulas líbicas, etiópicas, e a identificação de Esopo com Aithiops. A publicação moderna dos Contos dos Zulus, por Henry Callaway, veio esclarecer-nos sobre a evolução das formas tradicionais entre a raça negra, onde aparecem os contos do Renard, do Petit Poucet, e a elaboração de um fetichismo que perdeu a forma cultual. No Brasil existe nas festas do Natal e Reis Magos, o auto rudimentar do Bumba Meu Boi, análogo à festa do Boi Geroa, ou o Muene-Hambu dos Ba-Nhaneca, da África67. Muitas das fábulas africanas da população negra do Brasil são populares em Portugal, como o Cágado e a Festa no Céu, Amiga Raposa e Amigo Corvo, o Macaco e o Moleque de Cera, o Macaco e o Rabo, o Macaco e a Cabaça. No romanceiro português é frequente a alusão à raça negra na nossa sociedade desde o século xv; no romance do Conde Grifos, se diz: «A um pretinho que tinha – Uma lança lhe há dado»; no romance da Morena, vem: «Manda os pretinhos à lenha – E as moças buscar água.» Vê-se que este elemento penetrou profundamente na sociedade portuguesa e que a sua prolongação no Brasil foi fortificada pela necessidade da exploração agrícola. Assim como o cruzamento do elemento negro com o indígena produz essa mestiçagem chamada o cafuzo, também as suas tradições num ou noutro ponto se encontram; a fábula da Onça e o Bode (pág. 149) coligida em Sergipe, acha-se na tradição dos indígenas do Juruá, coligida sob o título O Veado e a Onça (pág. 184) como a fábula do Jabuti aparece na África.

87O elemento africano manifesta-se ainda por uma grande abundância de superstições populares; em Portugal o preto conserva um prestígio mágico, empregado na venda das cautelas das lotarias, como também no século passado circularam profecias em nome do Pretinho do Japão. Entre as crenças populares portuguesas existe o costume de trazer uma oração escrita e dobrada dentro de uma pequena bolsa ao pescoço, a qual livra do raio, dos assassínios, de morrer afogado ou repentinamente, e de outros males. Em África a oração é essencialmente um remédio, que os feiticeiros exploram, tal como o descrevem minuciosamente Astley e Caillé. As superstições e medicina popular relacionadas com o elemento africano, não são tão simpáticas como os contos e fábulas provenientes do seu fecundo fetichismo, mas são dignas de se estudar como documento da situação de uma raça violentamente degradada.

  • 68 O Selvagem, p.746.
  • 69 Op. cit., pág.138.
  • 70 Op. cit., págs. 148-150.–Estas lendas e fábulas foram traduzidas para francês com o título: Contes (...)

883. – Tradições das Raças Selvagens do Brasil. – Todos os que têm coligido tradições populares conhecem o fenómeno psicológico de desconfiança ou de medo com que os depositários desses tesouros poéticos respondem às interrogações que lhes fazem; receiam descobrir essas reminiscências queridas, julgam-se expostos ao ludíbrio dos indiferentes, têm medo às vezes que as suas palavras se tornem sortilégios com que os persigam. Isto que observámos durante a coleccionação do Cancioneiro e Romanceiro Geral Português e dos Contos Tradicionais repete-se com mais intensidade entre as raças selvagens. O Dr. Couto de Magalhães, no seu livro O Selvagem do Brasil, onde coligiu as principais tradições dos Tupi e Guarani, acentua este importante facto: «Todo aquele que tem lidado com homens selvagens, terá conhecido por própria experiência o quão pouco comunicativos são eles em tudo quanto diz respeito às suas ideias religiosas, suas tradições e suas lendas domésticas. Eles têm medo que o branco, o carina, se ria deles...»68 Para vencer esta repugnância do povo a revelar a sua tradição, a primeira condição é mostrarmo-nos conhecedores dela, repetindo fragmentos que estimulem a imaginação, e assim lhe recordem os trechos conservados inconscientemente na memória, e que familiarmente se fazem recitar de um modo espontâneo. Jocob Grimm, o grande coleccionador das tradições populares da Alemanha, era também o homem que melhor conhecia o fundo poético e nacional das raças germânicas; Castren, o que mais conheceu os dialectos das tribos mongólicas, foi por isso quem melhor soube interrogar essas tribos e coligir-lhes as suas tradições dispersas. Com as tradições das raças selvagens do Brasil deu-se a mesma circunstância; o Dr. Couto de Magalhães, além do seu carácter audacioso e empreendedor, conhece os diferentes dialectos da língua geral, e por este meio entrou na familiaridade dos que acidentalmente se destacaram da vida selvagem para o contacto da civilização brasileira. Com o conhecimento da forma amazónica do tupi é que o Dr. Couto de Magalhães penetrou depois na investigação das lendas, confrontando-as com outras que ouvira em Mato Grosso. Em alguns lugares do seu livro declara a fonte donde colheu as tradições: «Fui auxiliado no trabalho das lendas por um soldado do 2.° regimento de artilharia, que quase não falava o português.»69 A guerra do Paraguai não deixou de ter influência no estudo das raças selvagens do Brasil; diz o Dr. Couto de Magalhães, que durante essa guerra é que ouviu pela primeira vez, a bordo de um vapor no rio Paraguai, um marinheiro contar as Histórias do Jabuti, apenas com alguns aforismos ou anexins em língua tupi. Viajando depois para a foz do Amazonas, parou no Afuá ancoradouro de muitos barcos que navegam para o Ampá e Guana; ali ouviu de novo os Contos ou Histórias do Jabuti. Mais tarde voltando ao Pará, coligiu das versões orais de um marinheiro índio mundurucu algumas das lendas que lhe serviram de crestomatia para o seu livro70.

  • 71 Contos Populares Portugueses, pág.x.

89Alguns destes contos são populares também nas províncias do interior do Brasil: «Existem aqui nos corpos da corte, escreve o Dr. Couto de Magalhães, nada menos do que quarenta a cinquenta praças que falam o tupi, e como são indígenas todos sabem de cor algumas lendas que figuram nesta colecção.» Essas lendas bem mereciam ser conhecidas, e pela forma que o Dr. Couto de Magalhães as introduziu no seu livro debalde se suspeitará que ali esteja arquivado um tão importante documento tradicional; a forma de tradução interlinear, sacrificando a construção portuguesa à inteligência da construção da frase tupi, é necessária para o trabalho gramatical, mas prejudica algum tanto a importância etnológica do monumento tradicional. Só tornando bem conhecidas as tradições das raças selvagens do Brasil é que se podem fazer comparações com as de outros povos selvagens, vindo assim a deduzir-se relações que talvez esclareçam problemas instantes da antropologia. Por exemplo: a fábula do Jabuti, que vence o Veado na carreira, foi também achada na África e em Sião, e já assim a interpretação sidérica dessas fábulas não será um esforço de crítica subtil e sem realidade. Também na colecção de fábulas africanas, publicadas pelo Dr. Bleek, com o título de Reinche Fuchs in Africa, encontra-se um conto dos indígenas de Madagáscar (pág. xxvii) e um conto dos Dama, ramo da raça cafre, com grandes analogias com o conto popular português do Rabo de Gato, dos Contos Populares Portugueses, n.° x, e na tradição popular da Sicília e de Otranto71. À medida que estes resultados comparativos se forem alargando, se chegará a determinar que um grande número de expressões míticas da nossa linguagem, e de contos populares representam um subsolo selvagem sobre que se formaram as nossas civilizações, da mesma forma que os etnologistas explicam hoje já a persistência das guerras e ainda os crimes individuais do assassinato e do latrocínio como formas de recorrência dos hábitos selvagens primitivos. Pelo desenvolvimento desta ordem de estudos, que já dotaram a filologia com o capítulo novo da linguagem generativa, e a etnologia com o problema das origens da família, é que se há-de fundar a Ciência das Civilizações Proto-Históricas, sobre que se basearam as civilizações superiores no seu período do empirismo espontâneo. Uma destas civilizações proto-históricas é a das raças cito-mongólicas, nome que talvez seja preferível para exprimir as raças turanianas, da mesma forma que os antropologistas propõem o nome de Siro-Árabes em vez de Semitas, e Indo-Europeus em vez de Árias. O pressentimento destas civilizações proto-históricas, que se distinguiram por um grande saber de indústria metalúrgica e por conhecimentos astronómicos, como entre os Acádios e Cuchitas, é que leva hoje alguns espíritos sugestivos a procurarem interpretar os mitos zoológicos das raças selvagens como expressões de factos siderais observados pela condição da sua situação geográfica. O professor Hartt, que também coligiu algumas lendas brasílicas no Tapajós, considera-as como velhas tradições astronómicas da raça tupi; no opúsculo The Amazortian Tortoise mythes vêm os elementos da sua interpretação sidérica, que o Dr. Couto de Magalhães aplica às fábulas do Jabuti. Transcreveremos as próprias palavras do ilustre etnólogo brasileiro em que segue o ponto de vista do Prof. Carlos Frederico Hartt: «É assim que a primeira lenda explicada pelo sistema solar, parece-me oferecer no Jabuti o símbolo do Sol, e na Anta o símbolo do planeta Vénus.

90«Na primeira parte do mito, o Jabuti é enterrado pela Anta. A explicação parece natural, desde que se sabe que em certa quadra do ano Vénus aparece justamente quando o Sol se esconde no Ocidente.

91«Chegado o tempo do Inverno o Jabuti sai, e, no encalço da Anta, vai sucessivamente encontrando-se com diversos rastos mas chega sempre depois que a Anta tem passado. Assim acontece com o Sol e Vénus, que quando aparece de manhã, apenas o Sol fulgura ela desaparece.

92«O Jabuti mata finalmente a Anta. Isto é, pelo facto de estar a órbita do planeta entre nós e o Sol, há uma quadra do ano em que ela não aparece mais de madrugada para só aparcer de tarde. O primeiro enterro do Jabuti é a primeira conjunção, aquela em que o Sol se some no Ocidente para deixar Vénus luzir. A morte da Anta pelo Jabuti é a segunda conjunção, aquela em que Vénus desaparece para deixar luzir o Sol.» Estas interpretações astronómicas poderiam considerar-se simplesmente engenhosas ou gratuitas, se o Dr. Couto de Magalhães que andou muitos anos entre os selvagens do Brasil, não tivesse notado os seus conhecimentos de fenómenos astronómicos. O contacto com uma civilização completa como a quíchua, que possuía uma teologia baseada no culto solar, toma plausível esta interpretação, considerando esses conhecimentos tradicionais do selvagem brasileiro como vestígios de uma civilização interrompida. Vamos tentar o esboço dessa civilização rudimentar.

  • 72 Prichard, com o seu lamentável biblicismo, obscurece esta consideração, dizendo do indígena america (...)
  • 73 Apud Prichard, Hist. nat. de l’Homme, ii, 85.
  • 74 Ibid., ii, 87.

93As raças da América do Sul foram classificadas por d’Orbigny em três grandes troncos, Ando-Peruviana, Pampiana e Brasílio-Guaraniana; esta divisão admitida por Prichard, condiz com um certo número de diferenciações, tais como: a dolicocefalia dos peruvianos característica das raças da América Setentrional, o desenvolvimento da grande civilização dos Quíchuas ou Incas sobre as ruínas de uma civilização mais antiga, porventura autóctone, dos Aimarás, resultando deste longo conflito a dispersão da raça pampiana em numerosos grupos ou hordas, que, ou não chegaram a assimilar os progressos realizados pelos Incas, permanecendo no estado selvagem, ou, se iniciaram essa cultura, regressaram por efeito das lutas à selvajaria primitiva72. A fragmentação das raças da América do Sul é um dos fenómenos que mais impressiona o antropologista, bem como a coexistência de civilizações completas anteriores aos tempos históricos e estados selvagens que parecem uma regressão à animalidade primitiva. Na raça brasílio-guaraniana, a fácil tendência para a sociabilidade revela-nos que entraram nas primeiras vias de um processo que foi interromido por circunstâncias especiais. De facto as raças do Sul caracterizam-se também pela sua braquicefalia, pela obliquidade dos olhos peculiar dos Mongólios, tendo também numerosas analogias étnicas com as raças nómadas da Alta Ásia. No seu grande trabalho Crania americana, o Dr. Morton traz algumas indicações bem características para separarem as raças indígenas da América do Norte das da América do Sul; depois de descrever os crânios oblongos (dolicocéfalos) do Norte, diz: «As cabeças dos Caraíbas, tanto das Antilhas como da terra firme, são também naturalmente arredondadas (braquicéfalas) e, segundo as observações que pudemos fazer, este carácter persiste nas raças meridionais ainda, nas nações situadas a leste dos Andes...»73 Prichard não viu o alcance desta diferenciação cefálica estabelecida por Morton; nos modernos trabalhos antropológicos de Paul Broca, acha-se uma distinção igual entre os povos bascos espanhóis e franceses, o que parece fundamentar a existência dos dois tipos primitivos: o basco espanhol é dolicocéfalo, e o basco francês é braquicéfalo. Não admira pois que nas conquistas espanholas da América se estabelecesse uma fácil fusão do espanhol e regressão ao tipo indígena. Na América do Sul a braquicefalia também leva à compreensão de analogias excepcionais já observadas pelos antropologistas; diz Morton: «Entre os Índios da América do Norte é raríssimo ver pronunciar-se nitidamente a obliquidade dos olhos, que é tão geral nos Malaios e Mongólios; mas Spix e Martius observaram-na em algumas tribos brasileiras, e Humboldt nas do Orenoco, etc.»74

  • 75 Ibid., ii, pág.223.
  • 76 Ibid., loc. cit.
  • 77 Ibid., ii, 271.
  • 78 No prólogo do Cancioneiro da Vaticana, cap.vi.
  • 79 Nas Questões de Literatura e Arte Portuguesa, págs. 61 a 80.
  • 80 Nas Epopeias da Roça Moçárabe, págs. 127 a 137; e Teoria da História da Literatura Portuguesa, pág. (...)

94Falando da cor amarela, estatura mediana, fronte deprimida, olhos muitas vezes oblíquos, sempre elevados no ângulo exterior, das raças brasílio-guaranianas (Caribes, Tupi e Guarani), acrescenta Prichard: «Estas feições que pertencem às grandes raças nómadas da América do Sul, aproximam-se, como se vê, bastante das raças nómadas da Alta Ásia.75 Também Spix e Martius acharam nos Caribes uma semelhança palpável com os Chineses76; e falando das ideias religiosas dos Americanos, acrescenta Prichard: «Devemos fazer notar, que há sobre todos estes pontos uma grande analogia entre as opiniões dos Americanos e as dos Asiáticos do Norte.»77 Por tudo isto se pode inferir, que foi das raças nómadas da Alta Ásia que se destacaram essas migrações que entraram na Europa antes dos Indo-Europeus, e que se conhecem pelo tipo braquicéfalo do basco francês; a coincidência da dolicocefalia do basco espanhol com o berbere, como notou Broca, revela-nos também o caminho por onde o turaniano da Ásia entrou no Sul da Europa vindo através da África, onde uma parte estacionou. É por isso que se toma legítima a comparação das canções provençais com os cantos acádicos e chineses78, bem como com o fenómeno da persistência da modinha brasileira79, e o mesmo processo leva a grandes resultados aproximando o romanceiro peninsular ou as Aravias dos cantos históricos ou Yaravis do Peru80.

95Destas rápidas considerações antropológicas e étnicas somos levados a tentar estabelecer uma nova divisão entre a Pré-História e a História, a partir desde o tipo humano troglodita até às civilizações rudimentares, isto é, desde o desenvolvimento das condições de sociabilidade, especialmente da linguagem articulada. Depois deste estado, a que se chama Pré-História, deve estabelecer-se como intermédio para a História propriamente tal, uma fase de conexão evolutiva, já pressentida por Littré, a que chamaremos Proto-História: deve compreender as civilizações rudimentares acádica, cuchita, mexicana, peruviana, etrusca e chinesa. Se a Pré-História foi fundada pelos antropologistas, compete aos etnologistas o desenvolver a Proto-História pelo estudo comparativo dessas civilizações improgressivas, produzidas principalmente nas raças turanianas ou mais propriamente cito-mongólicas. Estes estudo só pode ser fundado pela contribuição da Mitografia, da Linguística, da Etnografia, da Cronologia, das Literaturas Tradicionais, das Artes Ornamentais e Técnicas, da Psicologia Comparativa e da Cosmografia; neste vasto complexo de ciências concretas e subsidiárias da Proto-História, as superstições populares, as fábulas ou bestiários e os contos míticos são mais fecundos em resultados do que as comparações antropológicas. Vamos tentar a indicação dos contornos da Proto-História, em que devem ser estudadas as tradições das raças do Sul da América.

96Entre as civilizações isoladas, que por esta condição material se tornaram improgressivas, ocupam um lugar importantíssimo depois do Egipto e da China, as duas civilizações do México e Peru. É este o seu lugar na história da humanidade; talvez tão antigas como a do Egipto, mas ainda mais isoladas pelo território, pela pureza da raça e por falta de estímulo de outros povos, estas devem ser estudadas antes do aparecimento das raças áricas, e sob um critério comparativo, como o vestígio mais completo da capacidade social do elemento turaniano. O conhecimento da China data na Europa da época da invasão dos Tártaros (1240) e especialmente depois da leitura das Viagens de Marco Polo; as maravilhas contadas pelo atrevido viajante italiano exaltaram a imaginação de Colombo, e este ousado navegador pensando que descobria o Catai ou a China, abordava ao continente desconhecido da América, onde existiam outras civilizações igualmente isoladas e com analogias profundas com a chinesa. Esta circunstância casual que conduziu Colombo à descoberta da América, explica-nos também como o continente americano chegou a ser habitado por uma raça civilizadora, que nas suas expedições marítimas abordou inconscientemente à América pela corrente do Gulf-Stream. Essa raça primiviva é turaniana, e por isso os graus do seu progresso, mitos, literatura e arte, têm profundas analogias com as criações do génio chinês.

  • 81 Max Müller, Essais de mythologie comp., pág. 321.

97As muitas relações étnicas entre o México e a Índia, nos mitos, nas tradições populares, nas formas simbólicas, não escaparam a sábios como Wilson, Tylor e Alexandre de Humboldt; o motivo dessas relações foi debalde procurado em comunicações históricas imediatas com as raças áricas supondo já a hipótese de uma migração do Nordeste da Ásia para o Noroeste da América, já a de uma comunicação entre os dois continentes por uma ponte de ilhéus no meio do estreito de Behring. A descoberta dos monumentos cuneiformes, e a leitura dos livros acádicos, restabelecendo a civilização turaniana, veio derramar uma luz imensa sobre a marcha evolutiva da humanidade. Onde as civilizações turanianas foram absorvidas, como no Egipto, Caldeia e Assíria pelas raças cuchito-semitas, ou na Índia pela raça árica, frutificaram; no México essa mesma civilização tornou-se improgressiva por falta de estímulo social. Como ramo turaniano, a civilização do México torna-se um facto claro pela comparação com as manifestações análogas dos outros ramos da mesma raça; a sua teologia é tão desenvolvida como no Egipto, os seus mitos produzem epopeias como a de Ghisdubar em Babilónio, ou a do Kalevala na Finlândia; o seu teatro sai dos ritos litúrgicos, como na Índia, e também a sociedade é submetida a uma autoridade teocrática. Os costumes mexicanos ainda apresentam analogias com os de raças turanianas existentes; a superstição de não bulir no lume com uma faca, é turaniana, e por isso é comum aos Tártaros, aos Índios Sinx da América do Norte, e aos habitantes da extremidade nordeste da Ásia entre os habitantes do Kamschatcka81; o mesmo rito aparece referido numa máxima pitagórica «Não bulir no lume com uma faca.» A reconstituição dessa grande civilização proto-histórica vem explicar a unidade de um certo número de tradições entre povos que não tiveram relações entre si nas épocas históricas. A civilização do México tem a importância de nos mostrar em um grande número de instituições o génio criador da raça turaniana; e ao mesmo tempo como a precocidade da sua capacidade inventiva o conduziu à esterilidade e decadência pelo seu remotíssimo isolamento que o subtraía a toda a pressão social. O mesmo facto se repete na vida histórica da China, talvez o mais vetusto dos ramos turanianos, que estacionou no familismo pelo seu isolamento na extrema Ásia.

  • 82 Max Müller, Essais de mythologie comparée, pág. 318.
  • 83 Ibid., pág. 320.

98No seu pequeno estudo sobre os Usos e Costumes, Max Müller cita este, que se conserva ainda na ilha de S. Miguel: «Há, nas tradições populares da América Central, a história de dois irmãos, que na ocasião de partirem para uma perigosa viagem no país de Xibalba, onde seu pai morrera, plantam cada qual um canavial no meio da casa de sua avó, para que ela possa saber, vendo as canas florirem ou secarem-se, se os seus netos são vivos ou mortos. A mesma concepção se encontra exactamente nos contos de Grimm. Quando os dois filhos de ouro querem ir ver o mundo e deixarem seu pai, este, com tristeza lhes pergunta como poderá saber novas deles; responderam: – Nós vos deixaremos dois lírios de ouro. Por meio deles vós podereis ver como passamos. Se estiverem viçosos, é porque nós passamos bem; se emurchecerem, é porque estamos doentes; se caírem ao chão, é porque somos mortos. – Grimm indica a mesma ideia nos contos indianos. Ora tal ideia é bastante extraordinária, e muito mais ainda o encontrá-la simultaneamente na Índia, na Germânia e na América Central. Se ela se encontrasse somente nos contos indianos e germânicos, poderíamos considerá-la como uma antiga propriedade ariana; mas quando a encontramos na América Central, só nos restam dois meios de sair da dificuldade: ou é preciso admitir que houve, numa época recente troca de ideias entre os colonos europeus e os noveleiros indígenas da América… ou então se não existe algum elemento inteligível e verdadeiramente humano nesta suposta simpatia entre a vida das flores e a dos homens.82» O facto da existência simultânea na Índia e no México de uma tal tradição, conduz a determinar a única filiação histórica possível e confirmada hoje na ciência. Antes da civilização ariana existiu na Ásia a civilização turaniana, que lhe serviu de base de desenvolvimento; nos costumes do México conservam-se também muitas formas comuns às raças tártaras e basca, que são de origem mongoloide; além disso na Europa, os elementos basco, turco, magiar e finlandês são os restos da primitiva civilização proto-histórica turaniana. O costume supracitado é uma revivescência de crenças de uma raça que foi repelida da Europa Central pelas migrações indo-europeias, revivescência motivada pela tradição de origem turaniana trazida da Ásia Central. Max Muller explicava estas analogias por motivos subjectivos do sentimento humano «e que não é necessário admitir uma relação histórica entre os Aborígenes do Guatemala e os Arianos da Índia e da Germânia.»83 Diante da descoberta dos monumentos acádicos e da reconstrução da civilização turaniana, a verdade está do lado da realidade histórica.

  • 84 Comte, Système de politique positive, t. ii, pág. 462.

99Cremos ter aqui provado o grau e condição de superioridade das raças selvagens do Brasil, pelas suas relações antropológicas com a grande raça amarela. A mestiçagem com este elemento indígena deu na nacionalidade brasileira populações activas e individualidades dotadas de um grande sentimento artístico. A raça amarela, como a caracterizam os antropologistas, é essencialmente activa. A cooperação das três grandes raças humanas, a árica pela capacidade especulativa, a negra pela sua superioridade afectiva, e a indígena pelo tendência activa84, unificando-se no facto social da nacionalidade brasileira, fazem-nos augurar qual será a extraordinária grandeza da civilização sul-americana, de que o Brasil tem já a hegemonia. As tradições aqui reunidas representam o que os Romanos designavam como índoles dessa assimilação orgânica, que se tornará consciente.

Qual é a importância dessa expressão para o conto?

As expressões destacadas servem para marcar a passagem do tempo no conto, situando o leitor.

Qual é a importância dessas expressões para criar interesse pelo assunto?

As palavras e expressões destacadas indicam as circunstâncias em que ocorre o fato narrador. A importância dessas palavras e expressões em um texto narrativo é trazer mais detalhes para o leitor sobre como e quando acontecem as ações narradas.
O uso didático dos contos populares poderia ser explorado com diferentes objetivos na educação básica, sobretudo porque possibilitaria ao estudante identificar traços da cultura de seu grupo social. A leitura é de fundamental importância para a transformação social do indivíduo.
Os contos populares são histórias contadas há milhares de anos, de geração em geração! Elas representam questões humanas, ainda que os personagens sejam animais. E essas histórias, justamente por tratarem de questões genuinamente humanas, nos ajudam a entender o mundo, as outras pessoas e a nós mesmos.