O artigo 157 do Código de Processo Penal define as provas ilícitas como aquelas "obtidas em violação a normas constitucionais ou legais" [1], em outras palavras, cuja produção tenha se dado em desatenção à lei processual, à norma material ou, mesmo, aos princípios gerais. A doutrina, por sua vez, promove o refinamento do conceito legal ao diferenciá-las de acordo com a origem da vedação: "quando a proibição for colocada por uma lei processual, a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza material, a prova será ilicitamente obtida" [2]. Show
O imperativo bastante rígido aplicável às provas ilícitas, que, em regra, serve à proteção dos direitos constitucionalmente garantidos aos investigados [6], pode, no entanto, causar algumas distorções no caso concreto. A principal delas é: deve uma prova ilícita ser retirada do processo, ainda que possa ser utilizada em favor do réu? Algumas teorias dedicam-se a responder tal questionamento. A primeira delas é a teoria da proporcionalidade, de origem alemã, segundo a qual admite-se o uso da prova ilícita como fruto da ponderação entre valores fundamentais contrastantes, com a prevalência daquele que se mostrar mais caro à sociedade e ao próprio Estado Democrático de Direito [7]. Em termos práticos, "no confronto entre uma proibição de prova, ainda que ditada pelo interesse de proteção a um direito fundamental e o direito à prova da inocência, parece claro que deva este último prevalecer, não só porque liberdade e a dignidade da pessoa humana constituem valores insuperáveis, na ótica da sociedade democrática, mas também porque ao próprio Estado não pode interessar a punição do inocente, o que poderia significar a impunidade do verdadeiro culpado" [8]. A sua aplicação, inclusive, como bem defende MARCOS ZILLI, serve a uma das funções mais precípuas do Direito Processual Penal: a limitação do poder punitivo do Estado. Assim, "desconsiderar a prova nesse caso levaria à consagração abusiva da punição" [9]. Desdobramento dessa tese é a teoria da exclusão da ilicitude, capitaneada por Afrânio Silva Jardim, que defende que o réu que pratica um crime para obter uma prova em seu favor está amparado pelo estado de necessidade justificante e, uma vez que "o estado de necessidade exclui a ilicitude, pois a necessidade de salvar o interesse maior (liberdade de locomoção), sacrificando o menor (sigilo das comunicações telefônicas) em uma situação não provocada de conflito extremo, justifica a conduta do réu", ele estará "agindo de acordo com o direito e não de forma contrária", sendo a prova, portanto, lícita e admissível [10]. Lógica idêntica se aplica àqueles que defendem que a admissão da prova, nesses casos, está amparada pela legítima defesa, outra das causas excludentes da ilicitude da conduta [11]. Ainda, uma terceira teoria sustenta ser a prova ilícita, na realidade, uma categoria de ato processual nulo, mas que não deveria ter sua nulidade declarada em razão do princípio da escusa absolutória, o qual estabelece que, existindo fatores favoráveis ao réu, não se admite a declaração de nulidade da prova, visto que sua existência é de enorme valia para comprovar eventual inocência do acusado [12]. Apesar de variados os fundamentos, há um consenso doutrinário acerca da admissibilidade da prova ilícita, desde que seu uso seja em favor do réu. A jurisprudência, por sua vez, embora acene, de modo tímido, à admissibilidade da prova nessas condições, não revela, de modo seguro, qual fundamento deve ser utilizado para justificá-la. Na Reclamação nº 33.711, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, há somente breve trecho dissertando sobre a possibilidade de uso de prova ilícita em favor do réu, sendo "a única exceção à regra estabelecida no artigo 5º, LVI, da CF/88 (são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos)" [13]. Já no HC nº 164.493, igualmente julgado pelo STF, proferiu-se decisão ligeiramente mais detalhada, pois invocados o argumento proposto pela teoria da proporcionalidade e pela teoria da exclusão de ilicitude, posicionando-se no sentido de que, no ordenamento jurídico brasileiro, a prova ilícita, se benéfica para o réu, é plenamente admissível [14]. No âmbito da Justiça Estadual, mais especificamente no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), há alguns poucos acórdãos que tratam sobre o tema. Na Apelação nº 1500984-43.2019.8.26.0583 [15], admitiu-se prova ilícita decorrente de violação de acesso ao celular do acusado, uma vez que sua análise ensejaria sua absolvição, o que efetivamente se concretizou posteriormente. Na Exceção de Suspeição nº 0042252-23.2020.8.26.0000 [16], foi admitida uma gravação ilícita realizada pela advogada do réu de conversa travada entre uma Promotora de Justiça e a Juíza de Direito que presidia o feito, porque comprovava atuação parcial por parte desta última, o que levou à declaração da suspeição da magistrada e, consequentemente, a nulidade dos atos por ela praticados no processo. Em nenhum dos dois casos invocou-se, propriamente, o fundamento que conduziu a tais conclusões, apesar de mencionadas as teorias aqui trazidas. O fato de ter sido a prova ilícita admitida sem que houvesse a adesão a quaisquer dos fundamentos defendidos pela doutrina, sobretudo aqueles aptos a afastar a ilicitude da conduta praticada pelo agente para a obtenção da prova, podem gerar, no caso concreto, enorme insegurança jurídica. Isso porque, constatada pelas autoridades a prática delitiva que produziu ou obteve a prova ilícita, é possível que o sujeito seja submetido a uma investigação ou, pior, seja por ela responsabilizado administrativa, civil ou criminalmente. A exemplo, no caso de exceção de suspeição citado acima, a advogada que gravou a conversa entre a Promotora e a Juíza sofreu represália por essa ação, sendo submetidos os fatos tanto à OAB quanto ao próprio MP para que analisassem a conduta praticada pela defensora. No entanto, se a teoria da exclusão de ilicitude tivesse sido escolhida como justificativa para a admissão da prova, sua atuação seria lícita e, por esse motivo, não poderia suportar qualquer tipo de retaliação. Uma vez existentes em nosso ordenamento jurídico teorias e institutos que, com sucesso, justificam os atos praticados nessas circunstâncias, é necessário que sejam elas utilizadas com a finalidade de evitar o impensável: submeter a uma persecução penal uma pessoa pelo simples fato de comprovar às autoridades sua inocência ou a de terceiros. [1]Artigo 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. §1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. §2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal seria capaz de conduzir o fato objeto da prova. §3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente. [2] GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antônio; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais ,2001, p. 133. [3] Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. [4] GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antônio; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais ,2001, p. 135. [5] GOMES FILHO, Antônio Magalhães; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de Processo Penal Comentado. 4ª ed. São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 505. [6] Sobretudo aqueles protegidos pelos artigos 5º, incisos III, X, XI e XII da Constituição Federal. [7] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 172-173. [8] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A inadmissibilidade das provas ilícitas no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 18, nº 85, p. 393-410, jul./ago.. 2010. p. 408-409. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=8024. [9] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Ainda sobre as provas ilícitas no processo penal. Revista da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, v. 12, nº 1, p. 45-62, 2012. p. 53. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=150339. [10] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 467. [11] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 382. [12] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 174. [13] STF. Rlc. 33.711, relator: ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. em 11.06.2019, p. em 23.08.2019. [14] STF. HC 164.493, relator: ministro Edson Fachin, Segunda Turma, j. em 23.03.2021, p. em 04.06.2021. [15] TJSP. Apelação 1500984-43.2019.8.26.0583, relator: Laerte Marrone, 14ª Câmara de Direito Criminal, j. em 21/08/2020, p. em 21/08/2020. [16] TJ-SP. Exceção de Suspeição 0042252-23.2020.8.26.0000, relator: Guilherme G. Strenger, Câmara Especial, j. em 24/02/2021, p. em 24/02/2021. Pamela Torres Villar é advogada no escritório Salomi Advogados. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Integra a Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. É possível utilizar provas ilícitas no processo penal?No direito processual penal brasileiro, conforme dispõe expressamente o artigo 157 do CPP, são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
É possível admitir provas ilícitas para inocentar o réu?Portanto, se, à luz de tais premissas, onde é inadmissível a condenação de um inocente, a utilização de uma prova ilícita que comprove a inocência do réu deve ser plenamente admitida, sob pena de frustrar a própria finalidade garantística do princípio.
O que é prova ilícita ela é admitida no Brasil?(2) Princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas: a prova ilícita é uma das provas não permitidas no nosso ordenamento jurídico. A CF, no seu art. 5º, inc. LVI, diz: são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
É possível a admissão das provas ilícitas por derivação?No Brasil, Consagrou-se a teoria da prova ilícita por derivação (teoria da árvore envenenada ou, ainda, do “efeito à distância"). Ela determina que, quando uma prova for produzida por mecanismos ilícitos, não é possível aceitar as provas que desta se originarem.
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