Habitualmente tenho o costume de frequentar nos finais das tardes, a orla da cidade (Beira Mar). Banco, farmácia, lojas de conveniências, panificadora, loteria, caminhada, tudo é motivo para me exercitar e apreciar a beleza vespertina do bairro. Na horizontal vislumbramos, sempre, o encanto infinito do mar colorido pelas jangadas, surfistas e banhistas, enquanto, no calçadão, homens, mulheres, jovens e crianças disputam lugares nas suas caminhadas. Lindo! Para cima a visão não é menos surpreendente. Enxergamos a ostentação de dezenas de prédios, outras dezenas em construção, disputando, entre si, o luxo e a suntuosidade das suas arquiteturas para abrigar uma minoria privilegiada. Alguns, acreditem, não trazem, consigo, o diploma da honestidade. Entretanto, nem tudo é belo. Se olharmos para baixo vemos, frequentemente, nas encostas das calçadas, dezenas de crianças e jovens abandonados que a sociedade pudica e insensata os alcunha de trombadinhas, moleques, flanelinhas, viciados, traficantes e outros cognomes inaceitáveis. São eles, infelizmente, sem que os tenham pedido, a escória de uma sociedade injusta. Por quê? Porque não existe uma política social eficaz para combater e erradicar o menor abandonado. Pois bem: De tantas idas tornei-me conhecido de um desses menores que vou chamá-lo de “amigo abandonado”. Ele chamava-me, sempre, de Doutor. (submissão das pessoas humildes). Vivia sempre pela Abolição. Sujo, descamisado e descalço. Era esta a sua indumentária diária. Certo dia o convidei para lanchar em uma panificadora próxima. Pedido aceito incontinenti. A fome não rejeitaria. Logo chegamos. Já estava me acomodando quando percebi a sua ausência. Olhei para a porta e o vi na calçada, coçando a cabeça e com um sorriso amargo pensando ou talvez querendo dizer-me: “Doutor esse lugar não é para mim”. Um vigilante o impedira de entrar. Por quê? Porque a sociedade os rejeita. Retornei e pedi explicação ao funcionário. Este, cumprindo determinações, certamente, alegou tratar-se de um menino de rua, sem camisa e sem chinelos. Não concordei, pois se tratava de um amigo e dentro do estabelecimento apontei dois jovens robustos, sem camisas e descalços. Mas estes tinham um diferencial. Ostentavam saúde e riqueza. Sem argumentos para tréplica, o “amigo abandonado” entra, afinal, no estabelecimento. Escolhe o refrigerante e o biscoito da sua preferência e por um instante sente-se cidadão igual a dezenas de outros que lá se encontravam. (Aconselho, sempre, nunca dar dinheiro a esses pequenos jovens. Deem dignidade.) Na mesa travamos o seguinte diálogo: __ E aí como estás? __ Aqui é massa hein Doutor! Ar condicionado! __ Por que você não fica em casa, ajudando os seus pais, ao invés de perambular pela rua? __ Não tenho casa, Doutor. Não tenho pai e a minha mãe quase não a vejo. __ Você não pretende se recuperar desse vício? Ir para uma clínica? __ Já ouvi falar nessa clínica. Mas aí... Quem me leva, onde fica? __ Tens razão, amigo. É difícil. E o que você pensa do futuro? __ Ah! O meu futuro é o presente, Doutor. __ ? ... Calado, lembrei-me das palavras do filósofo alemão Friedrich Wilhelm Nietzcshe (1844 – 1900) “As pessoas mais felizes e realizadas são as que sabem aonde querem chegar e têm metas. E quando nossa vida se torna plena de sentido, de uma hora para outra os esforços já não são cansativos, e sim passos necessários em direção à meta que estabelecemos”. O meu amigo abandonado não tinha metas, nem futuro, era movido pelo presente. Já fora do estabelecimento nos despedimos. Valeu, Doutor, disse ele com um sorriso de felicidade retornando para a sua calçada. Eu, para o apartamento. Por quê? Porque a sociedade é, infelizmente, desigual. Observação: Há dias, passando pela Avenida da Abolição e, sentindo a ausência do “amigo abandonado”, pedi informação a um dos seus colegas de calçada. Este me respondeu. __ O mago já foi Doutor. __ Para onde? __ Nós aqui tem vida curta, Doutor. É para ti, “amigo abandonado”, que estás com certeza bem acolhido, já perdoado dos teus pequenos crimes que envio a música “MENORES ABANDONADOS”, do pregador PADRE ZEZINHO, cuja letra, forte, respinga diretamente naqueles que têm o dever de proteger esses pequenos jovens, reféns de uma política social desigual e que não têm a menor culpa de serem infelizes, rejeitados, moradores das calçadas. Abilio, 6 fev 2013 Autor: Abilio Lourenço Martins |