Tranqüilo com sua imortalidade (ele foi eleito no ano passado para a Academia Brasileira de Letras), José Murilo de Carvalho, que completa 66 anos neste mês, é um historiador com tempo e energia para escarafunchar o passado, analisar o presente e pensar o futuro. Como bom mineiro, tem até uma anedota verídica para explicar a sua profissão de fé acadêmica, cuja ambição é a produção de conhecimento novo. Ele conta que, numa palestra em São João del Rei, alguns morcegos se puseram a dar rasantes sobre o conferencista e seu público. “Só mais tarde, revivendo a emoção com calma, como aconselhava Wordsworth aos poetas, conselho extensível aos historiadores, é que me dei conta que se tratava de gentileza da cidade colonial”, lembra. “Os morcegos queriam ilustrar minha palestra. O historiador tem que possuir a agilidade, a leveza e a sensibilidade ultra-sônica dos morcegos para detectar, configurar e decifrar seu objeto”. Professor titular de História do Brasil, ligado ao Núcleo de Pesquisas e Estudos Históricos da UFRJ, José Murilo começou seus estudos na Universidade Federal de Minas Gerais, mas como economista. Foi, longe do Brasil, nos Estados Unidos, quando foi tirar o seu Ph.D. na Universidade de Stanford, que se descobriu um apaixonado pelas evoluções políticas e sociais de seu país. “Chegando lá, passei a me preocupar com o Brasil como um todo. Foi lá que enfrentei o meu primeiro tema maior: como se construiu o Estado nacional do ponto de vista da estratégia dos grupos no poder”. Daí resultaram os livros A construção da ordem (1980) e Teatro de sombras (1990). Mas falar em elites no Brasil dos anos 1970 não angariou a ele grande popularidade entre os meios acadêmicos, envolvidos em discussões sobre as classes populares. Para os colegas, tinha virado “elitista”. Mas o engano era só de desafetos desinformados. Num tempo em que não se pensava nas elites, José Murilo teve coragem de estudar aqueles que mais influenciavam a vida das massas empobrecidas. Depois da tese, mudou seu foco de atuação. “Em Os bestializados (1987), à preocupação com a construção do Estado agregou-se o problema da construção da nação. Quando se percebeu, com a mudança de regime, que não houve muitas alterações nas práticas políticas e eleitorais, muitos autores começaram a trabalhar com uma idéia mais ampla de construção da nação”, explica. Em Os bestializados, o historiador dissecou a atitude da população diante do poder, enfocando a perplexidade geral com o advento, da noite para o dia, da República. A partir de A formação das almas, a inflexão se ressalta: “Nele, falo sobre a tentativa do novo governo de recriar o imaginário nacional e da reação popular à tentativa”. Inquieto, agora não é mais a idéia de nação ou Estado que mobiliza seus neurônios, mas a construção do cidadão, da cidadania. “Meus trabalhos começaram com a questão da construção do Estado e passou para a construção do Estado-nação”, diz. Como os quirópteros, José Murilo está atento a qualquer novo movimento. Daí os comentários preciosos sobre o momento atual, suas raízes e conseqüências, expostos na entrevista a seguir. Na apresentação e na conclusão de seu último livro, Forças Armadas e política no Brasil, percebe-se que o senhor vê na desigualdade social nacional a grande ameaça para a democracia. No último parágrafo, aliás, o senhor observa que “corremos o risco de ser surpreendidos como
em 1964”. A situação atual de profunda crise o surpreendeu? Como avalia os desdobramentos dessa nova surpresa, seja em termos do que esperar no futuro, seja na incapacidade de prever que isso poderia ocorrer? Como entender que, apesar de tão estudado, o PT ainda pôde surpreender a sociedade? O senhor já afirmou que houve uma estranha evolução no Brasil e, até 1881, o país estava à frente mesmo da Inglaterra em termos de direito de voto. Ao longo do tempo, as massas foram incorporadas
ao processo. Por que, então, temos essa cidadania tão incipiente, sempre ameaçada ou não totalmente exercida? A incorporação das massas, com maiores demandas, algumas quase impossíveis de ser atendidas, é vista por alguns como fonte de problemas para a chamada governabilidade nacional. Daí o desejo de uma reforma política, que
deixe partidos mais fortes etc. mas que, no fundo, deixa o eleitor mais distante do processo decisório. Como o senhor vê essa situação e qual a sua compreensão de uma reforma política: precisamos de uma e de que tipo, em especial diante do contexto atual, em que ela é vista como panacéia para qualquer crise? Toda a crise de hoje parece passar ao largo da população, vista, como no artigo recente do professor Bresser Pereira,
em oposição à chamada sociedade civil, essa, sim, que leva o país. Como o senhor avalia essa dicotomia e esse distanciamento do povo? Antes, com a capital no Rio de Janeiro, as massas podiam mobilizar-se diante do poder, mas Brasília parece estar “fora do Brasil” e dessa forma o povo parece ainda mais alijado da participação e do poder de pressão junto aos governantes e aos políticos. Como vê isso? O senhor já afirmou que temos grandes dificuldades em acertar contas com o passado escravista e colonial. De que forma as mazelas do presente têm a ver com esse não enfrentamento do nosso passado? Sentimos que o povo brasileiro mudou ao longo do processo histórico. O mesmo pode ser dito das chamadas elites: elas mudaram na sua essência? O povo sempre
parece acalentar, por um lado, a esperança de um líder messiânico que resolva todos os problemas da nação, ao mesmo tempo que tende a ser tomado por um pessimismo em tempos de crise, achando que estamos “num mar de lama”. Como o senhor vê essa “paixão” de extremos e quais os fatores positivos e negativos que decorrem desse sentimento “edênico” do Brasil (o país visto como Éden)? A corrupção parece ser vista no Brasil como parte de nossa cultura e não erradicável. O próprio presidente afirmou na celebrada entrevista parisiense que “isso de caixa dois sempre houve”, com total normalidade? Quais as origens dessa corrupção endêmica e quando e por que ela se transforma, como o senhor preconizou em uma entrevista, em corrupção
epidêmica? Como mudar esse quadro desolador que traz tanto cinismo político à população? Quais as origens históricas dessa promiscuidade entre público e privado no governo brasileiro e quais as
conseqüências disso? Como mudar? O governo “rouba” e a população também não obedece às leis. Ou, nas palavras do presidente Lula: “O brasileiro quer cadeia para os outros, não para ele. Quer que todos sejam honestos, não ele”, e assim por diante. De que forma esse mal institucional também se repete na esfera individual, no cotidiano nacional, e de que forma uma corrupção se liga à outra? Qual a percepção que o brasileiro tem das leis? Aqui tudo parece querer ser resolvido com uma nova lei, como se bastasse legislar no papel para o problema acabar na realidade. Quais as origens desse bacharelismo e quais os problemas que ele traz? Pode-se mudar essa cultura ancestral? Desde 1985 houve um incremento nas liberdades individuais e na participação política da sociedade. Esperava-se que isso fosse ajudar a acabar com as desigualdades sociais, o que não ocorreu. O que houve e as razões históricas para isso? Qual é o nível atual de nossa democracia? Ela é
resolução de problemas? O senhor já sugeriu em um de seus livros que é preciso encontrar um outro caminho para a cidadania no Brasil. Qual seria esse novo caminho e as razões dessa peculiaridade nacional? Alguns estudos sugerem que crescimento e melhor educação não são suficientes para resolver o problema da desigualdade e da exclusão e que seria necessária a participação das elites num processo de
distribuição de riquezas. As elites, por sua vez, colocam todo o ônus do processo no Estado e não querem modelos em que percam sua soberania. Como resolver esse dilema da desigualdade nesses termos? Qual a real parte que cabe ao Estado e qual cabe às elites? As elites de outros países desenvolvidos perceberam no passado que era necessário reformas: agrária, distributiva etc. para a implementação de um Estado de bem-estar social. A nossa elite ainda não percebeu isso e vive com medo da violência:
como entender esse caráter “suicida” ou “predatório” das elites? O que esperar no futuro? Vivemos na chamada “Estadodania”: o Estado é visto como fonte de tudo. Por
quê? Qual a história disso e os enganos dessa visão? Ao mesmo tempo que as elites exigem que o Estado controle a desigualdade e a violência, quer o Estado longe da economia: essa dicotomia tem solução? O povo sabe o que é e como funciona o Estado: é comum se reclamar do governo federal a falta de polícia nas ruas, atributos dos governos estaduais ou municipais, só para citar um exemplo. Se pode ser cidadão se não se conhece o Estado? O senhor defendeu em artigo recente, escrito para o jornal O
Globo, a universidade pública das acusações de elitismo. Como é isso? O que acha da situação atual da universidade? Qual sua opinião sobre a polêmica reforma universitária proposta? Concorda com o sistema de cotas para minorias? Como o senhor vê a atuação da mídia, em especial a política e a econômica. Após o affair Collor, a imprensa passou a ser vista como fonte de revelações e uma espécie de mecanismo de controle da
República. Por um lado, isso é bom, porque é uma das funções sociais da mídia. Por outro, há o problema do “believe in everything you read in papers”: o que está escrito é verdadeiro. Há, no momento, uma onda de denuncismo, parte real, mas parte sem fundamentos, para vender jornal ou atacar o governo. Como vê isso? A mídia não é diferente de uma empresa qualquer, no geral, e “vende” um produto chamado notícia. Qual o perigo disso num país em que se tem pouca reflexão crítica sobre o que se é
divulgado? O país, em especial as elites, rejeita a reforma agrária e demoniza o MST. Como entender um país em que os pobres toleram a desigualdade? Qual a origem histórica disso e o que se pode esperar no futuro: uma onda de violência ou apenas mais tolerância com a miséria crescente? Numa entrevista à Folha, logo após a eleição de Lula, o senhor afirmou: “As dificuldades são proporcionais às esperanças que sua candidatura despertou. Terá que evitar o perigo do abraço mortal do apoio conservador que, ao lhe dar base de governo, pode lhe descaracterizar o programa. Terá que lidar com a cobrança de setores mais militantes que o apóiam, que exigirão mudanças rápidas. Terá que haver-se com armadilha criada pela grande expectativa de mudança que gerou na população,
desproporcional em relação às possibilidades de atendimento. Esses serão os fantasmas a perseguir o governo”. O senhor foi preciso no diagnóstico. Como avalia essa percepção diante do desenvolvimento real do governo Lula? Havia outro caminho a ser seguido? O que ele ainda pode fazer para mudar a situação? Lula é, palavras suas, ainda o “estranho no ninho da elite” e vítima dessa situação, como ele mesmo quer fazer crer? O que restará da esquerda após essa crise do PT, que, deixando de lado o exagero, parece o desalento que tomou conta dos admiradores de Stalin após a Primavera de Praga? Como vê o papel dos intelectuais nessa situação de crise: os intelectuais de esquerda sumiram do cenário do PT com corrupção. É o fim de um ciclo de esquerdas no Brasil? O desmonte do PT: como ficará o cenário com o partido enfraquecido? Lula vem falando muito em Vargas, em elites etc. Essa retomada de um espírito nacionalista, desenvolvimentista, clientelista, é bom ou necessário? Que outro modelo seria melhor ao Brasil? A corrupção pode provocar rupturas reais? Pode ser benéfica ao ser revelada em sua extensão? Qual é a relação entre
corrupção e desigualdade? Republicar |